ARTICULISTAS

Solidão humana

Por ironia, o menor, dez anos aproximadamente

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 08/07/2012 às 11:33Atualizado em 19/12/2022 às 18:38
Compartilhar

Por ironia, o menor, dez anos aproximadamente, busca abrigo sob a marquise do luxuoso clube da cidade. Cabelos loiros opacos pela sujeira. Só, na sua solidão de menor abandonado. Solidão humana. Os que passam, se o veem, fazem de conta não ver. É mais cômodo. A vida agitada exige descans onze horas da noite, cama quentinha esperando em casa, fria noite de junho.

Mas ele, o menor, não tem cama, nem teto, nem família. Seu lar é o mundo, vinte e quatro horas por dia, no aprendizado sofrido e amargo, selva indomável para sua fragilidade, só em sua solidão humana. Porque, outra ironia, ao seu lado, um pequeno cão, pelos brancos também encardidos e opacos, já dorme tranquilo. É uma companhia, uma proteção durante a longa noite que viria.

O menor e sua solidão. Os carros, o barulho, os transeuntes, e ele só. Enfrentando, a seu modo, fome e frio, doença e pesadelo. Não entende o mundo, a sua desigualdade, tanta casa grande, tanta mesa cheia de coisa gostosa, tantas roupas nas lojas, tanto brinquedo bonito, e ele só, ele e seu cachorro, só na solidão humana, ninguém o vendo, não querendo ver. Por que nasceu, por que o deixaram nascer, vivendo feito bicho do mato, também não entende.

Ouvira falar em escola, lugar de aprender. Virar gente. Como, não sabe. Descalço, sujo, roupa fedendo (os outros meninos diziam), inda mais com o cachorro pra olhar. Nunca ia ser gente. Sem família, sem ninguém... Tinha a impressão de ter nascido de alguma parede. Não podia ter pai e mãe. Se bicho não larga a cria, muito menos gente. Não podia ser filho de gente. Pensava, pensava, não via jeito de ser.

O lugar não é dos melhores para passar a noite: uma gentarada passando, parecia bicho diferente, nem deixavam seu cãozinho dormir. Ele não, que já está acostumado. Sem ontem, sem amanhã, só vivendo o hoje, aquele minuto, aquela hora. Entrara, certa vez, na igreja. Cheia de gente. O padre falando. Guardara na cabeça: que flor e passarinho têm comida e roupa. Sem preocupação. Deus arruma. Ouvira falar em Deus, poderoso, maior que o homem. Pode tudo. Por isso espera. Têm comida, sempre ganha. Amanhã é amanhã, ele não é pior que flor e passarinho. Deus devia saber de sua solidão. E de seu cachorro. De quem gosta mais que tudo na vida.

O frio aperta. O menino loiro arranja uma caixa de papelão. Não dá pra se esconder de corpo inteiro. Coloca as pernas nuas dentro da caixa. Os braços a descoberto. Para cobrir, apenas um pedaço de pano sujo, encardido, não mais que ele próprio. Será mesmo que fede, como dizem os outros? Seu cachorro sabe que não. Cheira, cheira, nada vê de diferente. Nem careta faz.

O pano encardido na mão. Só dá mesmo pra cobrir os braços, de tão pequeno. Cabeça tem de ficar de fora. E o frio vai ser barra pesada...

Tem tanto sonho bonito. Sonho de braços abertos para abraçá-lo. Braços de gente. Sonho de vozes nunca ouvidas: filho, mamãe, papai. Sonho de deixar de ser bicho do mato, de ser gente, gente, gente...

Amanhecem os dois, menino e cachorro, na mesma calçada. Madrugada fria. O menino acordado aos chutes pelo guarda-noite: “Acorda, moleque, aqui não é lugar de vagabundo.”

O cachorro dorme. O menor irrita-se: “Num grita não, palhaço. Num tá vendo que Lulim tá dormindo?”

O cachorro dorme. Quentinho, com o trapo, que só dá pra um, cobrindo seu corpo também imundo...

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por