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Saudade

Ela, às vezes, vai chegando de mansinho. Pequenos sinais

Marília Andrade Montes Cordeiro
Publicado em 26/07/2014 às 20:27Atualizado em 19/12/2022 às 06:44
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Ela, às vezes, vai chegando de mansinho. Pequenos sinais prenunciam sua aproximação. Um cabelo branco, sedoso e revolto, um chapéu de feltro, uma música, um gesto, uma voz, uma inquietação interior, uma falta de não sei o quê. E, de repente, ela explode que nem furúnculo. Doído, mas aliviando...

Assim aconteceu dia desses, com a notícia estampada em nossos diários:

_ “PMU disponibiliza arquivos do LAVOURA E COMÉRCIO”.

A saudade de alguns queridos que se foram me fez recordar, agora sim, sem dor, sem tristeza, a oportunidade que tive de conviver com algumas pessoas pela vida afora. Faces e cenas se sucedem num turbilhão sem fim!

Papai! Homem íntegro, de olhos azuis brilhantes, poucas palavras, moldado no ferro e fogo da marca que ele habilmente usava para cingir seu gado. Eu o amei e admirei desde tenra idade. Adorava acompanhá-lo e vê-lo na lida diária no campo. Foi e continua sendo um modelo único para mim.

Meu querido Netinho, que foi a causa propulsora  desse último surto de saudade...

Grande colunista do “Lavoura e Comércio”, voz forte e aveludada. Faria inveja a Lula se tivesse enveredado pela política, pois conhecia como ninguém a alma humana e seus sonhos e desejos.

Psicólogo sem diploma, lorde sem título, sabia enxergar carências alheias e usava seu dom para reerguer pessoas carentes. Jamais usou seu prestígio para denegrir quem quer que fosse. E como ficávamos orgulhosos por brilhar em sua página!

“Tio” João – homem extremamente humilde, que cuidava das crianças na creche do José Horta. Por um período frequentei essa creche, encarregada que fui de ajudar a dar banho nas crianças. Ficar ao lado dele era vivenciar a paz. Calmo, fala mansa, coração de ouro.

Meu amigo do canto jamais traduzido e indefinido, mas sempre no mesmo ritmo e compasso. De sabedoria indiana, presença certa nos momentos difíceis desde a nossa juventude. Poucas palavras, imensa capacidade de ouvir, deglutir, ponderar e decidir.

Meu amigo urso. Era amigo de infância de meu marido. Desde solteira tivemos uma convivência peculiar. Chamava-me de “lady”. Na alegria, na tristeza, no dia a dia, era a ele que eu recorria para me acalmar ou prosear. Muitos “blacks on the rocks”.

Maria! Tão frágil, tão doce, às vezes tão sozinha. Não consegui decifrá-la.

Poucos no papel. Mas profundas ausências que deixaram um vazio de fazer repensar o viver terreno.

Procuro na Bíblia, leitura de cabeceira. Mistérios da vida. Nada explica. Só a fé te move. Salmo 23.4 – “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum...”

No “Evangelho Segundo o Espiritismo” – Capítulo II – Há muitas moradas na casa de meu pai. “João, cap. XIV – V1, 23”.

Encontro ânimo e aconchego em Rubem Alves, que agora passou a fazer parte dessa dimensão espiritual:

_ “Ah! A vida é bela! O mundo é belo! É por isso que toda despedida é triste. É isso que eu sint que a morte é uma saudade sem remédio”.

E quando não há remédio, a única alternativa viável é “beber a taça até o fim”.

(*) Mãe de família

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