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Redemoinhos

Vadiava à toa. Solão de sábado à tarde, descanso merecido

Terezinha Hueb de Menezes
Publicado em 15/01/2012 às 13:28Atualizado em 17/12/2022 às 07:51
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Vadiava à toa. Solão de sábado à tarde, descanso merecido da dura semana de trabalho. Adorava correr as ruas do centro, olhar vitrines, parar nas bancas de revistas, sentar-se no banco da praça e ver o povo passar: a moça abraçadinha ao namorado, a meninada espantando os pombos, habituados à mãozada de milho que o pipoqueiro, todos os dias, jogava pela manhã e à tarde. 

Até que viu o grupo de crianças rodeando o mais novo jogo da cidade: a máquina cheia de bichinhos de pelúcia funcionava através de ficha, a pescaria podendo ou não dar certo.

Anima-se com o entusiasmo das crianças. Resolve arriscar. Por que não? E vai, lampeiro, encaixa ficha e fisga um bichinho; depois outro, e mais outro, os braços agora repletos de brinquedos, o dono da máquina de cara feia – prejuízo fora grande – ele com as faces queimando no rubor da alegria. De repente escuta, da boca de um dos meninos: “Eta velho de sorte!” Velho? A palavra soa como uma bomba. Seria para ele mesmo? Olhou para um lado, para outro, ninguém mais. Só ele e as crianças. O óbvio apontava para sua pessoa: de sorte, ele mesmo, ganhador de tantas prendas. Distribui ali mesmo o que ganhara, a vitória, agora, com sabor de derrota. Ganhara prendas e perdera a autoestima. Velho. Expressão doída para quem se julgava no auge da juventude, da virilidade, do entusiasmo pelo trabalho, pela vida enfim.

Resolve ir para casa. Ignora o cumprimento esfuziante da mulher; nem percebe a algazarra dos filhos, com a chegada do pai, sempre tão alegre nos folguedos das brigas simuladas, ele quase sempre rolando no chão, as crianças por cima, fazendo-o de cavalo, vencedores sempre.

Dirige-se ao banheiro. Com medo, olha-se no espelho. Cinquenta anos. Observa-se detidamente. Nunca havia percebido os cabelos já brancos nas têmporas; a pele já sem tanta elasticidade, deixando entrever a papada sob o queixo, os pés de galinha contornando os olhos, os vincos ao lado da boca, dando uma impressão de amargor. Vira de perfil e nota a proeminência da barriga, a flacidez dos músculos. Velho. A expressão soando-lhe como martelo aos ouvidos. “Eta velho de sorte!” Sente uma tristeza profunda. Onde ficara sua juventude? Onde guardara o encantamento de uma fase que se fora sem que se desse conta? Onde os olhares de admiração das moças quando ele passava, sabendo-se notado pelo porte elegante e pelo desembaraço? Em que gaveta da existência escondia-se o processo do envelhecimento que ele não vira acontecer e que, de repente, surge de uma só vez na boca da criança? “Velho de sorte!” Percebe, então, que a vida não tem volta mesm o que se foi, já se foi. Como não notara antes? Parecia-lhe que o tempo não passara assim tão implacável nas marcas deixadas em seu corpo. Burrice sua. Tentar resgatar a infância num jogo infantil. Tivesse ficado quieto e não teria ouvido a palavra amarga: velho.

Sem jeito. Ou melhor: o jeito seria assumir a descoberta da nova condição. Fechar de vez a gaveta da existência com os guardados de um tempo que ele não vira passar, perdidos totalmente nos redemoinhos de sua trajetória.

(*) Educadora do Colégio Nossa Senhora das Graças e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro[email protected]

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