Li, não sei mais onde, que a indústria farmacêutica faz parte do grupo que mais fatura
Li, não sei mais onde, que a indústria farmacêutica faz parte do grupo que mais fatura neste mundo de Deus. Não está sozinha na raia. Ao lado correm outros atletas como a indústria química, a petroleira, a armamentista e as construtoras. Se é verdade não sei. No ano da graça de 1964 (que não teve graça nenhuma), falar mal dessa gente era comunismo. Muita gente pagou o pato sem sequer saber o que era o comunismo.
Mas, por que estou falando dessa gente? Quero apenas mostrar que estamos sendo devorados por um caminhão de tubarões. A indústria farmacêutica me dá medo. É uma gente que fala uma língua estranha a qual dão o nome de “bula”. Ninguém entende aquele “engrolado”. Não sei por quê estranhas razões minha mãe lia as bulas de cabo a rabo. Não entendia nada, mas lia. Se agradasse, ela tomava o remédio. Se não entendesse, deixava pra lá. Ficava fiel aos chás que ela cultivava, dezenas de ervas medicinais. Da losna ao funcho.
Também meu avô Neca Prata gostava de ler bula. Certa vez, reclamou para minha avó Sinhá que estava sentindo umas coisas esquisitas, umas tremuras nas veias. A velha diagnosticou log “É sangue engrossado”. Telefonou pro Amílcar Decina e o remédio chegou no dia seguinte, pela jardineira das quatro. O velho botou os óculos, sentou-se numa espreguiçadeira e começou a ler a bula: “O risco de miopatia durante o tratamento com os inibidores... se apresenta aumentado com a administração concomitante de ciclosporine, fibratos, niacina em doses que alteram o perfil lipídico do citocromo P350 3ª4, por exemplo, eritromicina e antifungos azólicos”. Não entendeu nada, mas foi lendo assim mesmo. Voltou ao início da bula e leu mais um pouco. Leu a posologia, as precauções e mais uns dois ou três títulos. Nota zero. Tirou os óculos, assuou o nariz, sofria de rinite que chamava de “corredeira”. Amassou a bula e gritou lá pro fundo da cozinha: “Olésia, anda ligeiro e vem cá”. Era a mulher do vaqueiro, João Picão. Tomava conta da cozinha, da limpeza da casa, da lavagem da roupa, aguava as plantas e ainda fazia os queijos e os doces. Era uma negrona alta, forte, umas 10 arrobas e de muito pouca conversa. Obedecia sem discutir. “Olhe aqui, Olésia, vai lá na sua horta e prepara um chá pra mim, daqueles de ralear o sangue. Outra coisa, jogue a porcaria desse vidrinho no rego d’água e bota fogo nesse papel”.
O Capitão Neca Prata e a Olésia se entendiam. Eram delicadíssimos. Não fiquei sabendo se o sangue grosso do Capitão raleou e o que a Olésia andou misturando naquele chá pelando de quente que trouxe de volta. O certo é que foi engolido sem discussão e arrependimento. Esqueceram da “eritromicina e dos antifungos azólicos” e foram cuidar de seus costumeiros afazeres.
E nós, já estudados, entendemos alguma coisa dessa algaravia farmacêutica? Sabemos o que seja ciclosporine, fibratos e niacina? Por que não fazem duas bulas? Uma seria dedicada aos entendidos. Uma outra, numa linguagem simples e acessível, seria feita para nós, pobres ignorantes desses mistérios linguísticos laboratoriais. Só assim a gente poderia tomar consciência do que estava engolindo. Talvez até gastasse menos.