ARTICULISTAS

“O céu é aqui”

Lá pras bandas do Espírito Santo está a mineira Lajinha, entalada entre serras, espremida entre morros, cravada por grotas e socavões

Padre Prata
Publicado em 27/02/2010 às 00:36Atualizado em 20/12/2022 às 07:52
Compartilhar

(Uma crônica que eu gostaria de ter escrito)   Lá pras bandas do Espírito Santo está a mineira Lajinha, entalada entre serras, espremida entre morros, cravada por grotas e socavões. Cidade tipicamente mineira, com café de coador em fumegantes bules, broas de milho, torresmos, linguiças e o imbatível queijo da serra. Do cigarro de palha, botinas de elástico, pés-de-moleque e doce de leite. Sopa de farinha de milho com couve rasgada ou ora-pro-nobis e um nadinho de toucinho defumado. Lugarzinho aquietoso e assocegado, conversas compridas e bate-papos sem serventia. Da igrejinha velha, do vigário gordo, das rezas e das longas procissões na Semana Santa. Da pracinha antiga, com bancos de cimento e o coreto onde, ao entardecer de domingo, a bandinha toca valsinhas e polcas. Dos passeios de pedra onde, à tardezinha, quando a noite pispia a acontecer, as comadres solteironas e viúvas colocam as poltronas de vime e sentam para tomar a fresca.   Foi lá que Siá Catuta viveu muitos anos. O marido morreu e os filhos esparramaram-se por esse mundão de meu Deus, e nossa piedosa e doce amiga ficou só, com terços, ladainhas, rezas e promessas. Pobre e só. Passou a lavar roupa para os vizinhos. Lavar e passar. Mas o tempo foi passando e Tia Catuta envelheceu. Passou a lavar mal, pois não enxergava bem com seus olhos gazeados pela catarata. E, passar a ferro pior ainda. Com roupas mal lavadas, a freguesia foi escasseando e acabou. Com vergonha de pedir, nossa boa velhinha passou fome e foi enfraquecendo. Veio a anemia. Um dia a encontraram desfalecida no chão. Magrinha, desnutrida e levianinha. Levaram-na à Santa Casa e a internaram, graças ao empenho da comadre Caetana, boa, rica e caridosa criatura. Siá Catuta recobrou a consciência vários dias depois. Estranhou a cama limpinha, os lençóis brancos e bem passados. O doce silêncio quebrado unicamente pelos cantos religiosos ouvidos de longe. Acordou com uma freirinha, toda de branco, que penteava seus cabelos suavemente. Logo em seguir, ajeitou-a na cama. À tarde, deram-lhe banho, mudaram sua camisola e os lençóis. Logo lhe serviram o jantar. Uma sopinha rala e suave tempero, servida por pequena colher e levada à sua boca. Limparam-lhe os lábios com cuidado e a tudo Tia Catuta compartilhou sem dizer uma palavra.   Uma manhã a porta se abriu e entrou a comadre Caetana com um buquê de flores. Os olhinhos de Tia Catuta encheram-se de lágrimas e foi que, humildemente, ela perguntou: “Uai, comadre, a sinhora morreu tamém?”   (Autor: Hugo Prata)

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por