Vida urbana é pesadelo, para aqueles que não se acostumam com o barulho. Nem é preciso elencar os instrumentos de nossa irritação, quando atingem decibéis insuportáveis aos ouvidos
Vida urbana é pesadelo, para aqueles que não se acostumam com o barulho. Nem é preciso elencar os instrumentos de nossa irritação, quando atingem decibéis insuportáveis aos ouvidos. Seja na rua, no apartamento de cima do vizinho barulhento, dos gritos de correção sobre os filhos, os berros de crianças ao longe na hora do intervalo escolar... Há tantos outros que, várias crônicas, não dariam para citá-los.
No entanto, há aquele barulho repetitivo com o qual se acostuma e nos movemos por ele; começou a aula, é intervalo, saída dos alunos. Quando é noite o soar da sirene escolar vem acompanhada de barulho humano. São eles saindo, carros sendo manobrados e, desgraçadamente, as motos. Os motoqueiros recalcados fazem de suas motos a sua transexualidade, estalando escapamentos, acelerando acima do necessário e saem rasgando o vento, distribuindo barulho, com o firme propósito da satisfação a partir do incômodo alheio. A sirene esgoelada é substituída pelo esgoelo das motos.
Ouvi uma pessoa tocando piano no andar de cima ontem à noite, disse o morador ao síndico. Que responde que iria averiguar, porque na noite passada estava em viagem, mas ninguém havia falado com ele, até aquela hora, sobre tocar piano à noite em apartamento.
Como se não bastasse a sirene da escola, agora o piano. Isso sem falar das motos, ao final da aula do noturno e do diurno. No vespertino são crianças, a maioria é transportada por vans escolares. O barulho é substituído pelo caos no trânsito, ninguém consegue deslocar-se sem ferver o cérebro na hora do pico escolar. Esse trânsito nos adoece.
Seu Evódio, disse o síndico. Pois não. Ouviram uma música ao piano sim, mas não era aqui no prédio. Disseram-me que era de longe a música. De longe? É! Como se estive do lado de fora e o vento a carregou. Carregou diretamente para os meus ouvidos, pensou Evódio. Tudo bem, muito obrigado pela atenção, disse Evódio ao síndico.
De madrugada Evódio acordou assustado. Que horas são! Já era madrugada e não tinha ouvido a sirene, nem as motos e concluiu que estava cansado e dormiu sem sonhar e não acordou com os barulhos.
No outro dia pela manhã ouviu um som ao piano que vinha de longe e suavemente entrava em seus ouvidos. Isto é um presente do deus do vento, pensou, acalmando-o para um dia de trabalho. Quando foi à noite, a mesma música melodiosa entrou pela janela de seu apartamento e ele foi até à varanda para sentir de onde vinha aquela música. Foi quando ele observou os alunos saindo da escola, os professores caminhando rumo aos seus carros e os motoqueiros ligando as motos e saindo como se deseja de um civilizado. Concluiu que a escola ao mudar a sirene pela música acalmou os alunos e silenciou a noite.
(*) professor