ARTICULISTAS

Nossa relação com a morte

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 18/01/2022 às 20:14Atualizado em 18/12/2022 às 17:59
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Num tempo de pandemia, não podemos evitar o luto, a perda e a tristeza, quando a ameaçadora morte se aproxima em demasia de todos. Sabemos que a essência da angústia humana é a extinção, o medo da morte, da destruição do eu e do próprio corpo. O homem é o único ser vivo que é consciente da sua morte e finitude, o que acarreta, então, a angústia de sua limitação, de nada poder fazer contra ela. Por outro lado, a essência da motivação humana é a busca do significado para a vida, para o sofrimento e para a morte. Entre a angústia da finitude e o desejo de vida estende-se um espaço de tempo caracterizado pela busca de significado às dores e desafios necessários a não sucumbir.

Abrir o jornal, ligar a TV, entrar nas redes sociais significa expor-se ao ataque de notícias funestas: mortes, hospitalizações, índices de contágios, campanhas de vacinação em massa que já se encontram na 3ª e 4ª fase sem previsão palpável de fim. Negar é uma das formas de não entrar em contato com as experiências dolorosas. Pela negação ou repressão somos habilitados a viver num mundo de fantasias onde existe a ilusão da imortalidade. Se o medo da morte estivesse constantemente presente, não se conseguiria realizar nada. O homem quer se sentir único, criando obras que o imortalizem, vencendo aparentemente a finitude e a decadência da morte. Essa couraça de força é uma mentira que esconde uma fragilidade interna; rompê-la pode levar à loucura. Essa é a loucura atual – uma verdadeira histeria coletiva à frente da presença inegável da doença e morte neste tempo de pandemia.

A partir do século XX, a morte se esconde, torna-se vergonhosa, como fora o sexo na era vitoriana. A morte já não pertence à pessoa, tira-se a sua responsabilidade e depois a sua consciência. Desde então, a sociedade expulsou a morte para proteger a vida. Já não há sinais de que uma morte ocorreu. Dá-se a impressão de que nada mudou – a morte não deve ser percebida. A boa morte atual é a que era a mais temida na Antiguidade, a morte repentina, não percebida. A morte que é boa é aquela em que não se sabe se o sujeito está vivo ou não. A morte já não é um fenômeno natural, e sim um fracasso, impotência ou imperícia; por isso deve ser ocultada. O triunfo da medicalização é manter a doença e a morte na ignorância e no silêncio.

A atualidade impõe uma supressão até mesmo do luto, escondendo a manifestação ou a vivência da dor. Há uma exigência de domínio e controle, pois a sociedade não suporta ver os sinais da morte. Como conciliar essas atitudes negativas e repressivas diante da morte com uma experiência real de pandemia desde 2020. É enlouquecedor! Estamos numa loucura coletiva.

Ilcea Borba Marquez

Psicóloga e psicanalista

e-mail – [email protected]

 

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