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O Navio de Inês

Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Publicado em 23/07/2021 às 18:26Atualizado em 19/12/2022 às 02:43
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Trabalhando em países com línguas diferentes, muitas vezes temos que traduzir uma expressão que, ainda que clara no original, não diz nada se a passamos diretamente. Assim, ao buscar forma de verter o nosso “Inês é morta” ao inglês, estava claro que seria preciso buscar uma alternativa.

Essa expressão, que significa algo como “tarde demais”, vem de uma figura histórica bastante conhecida em Portugal, Inês de Castro. Como sói acontecer nesses casos, à história oficial somou-se a lenda. Sabe-se que a infeliz senhora foi assassinada por adversários políticos e, depois de morta, o marido, príncipe herdeiro da coroa, tentou validar o direito à sucessão dos filhos comuns ao informar que, em vida, sim, se haviam casado. Até aí, historiadores estão de acordo.

Quando a história passou a interessar a dramaturgos e foi convertida em peças de teatro, começou-se a propagar a lenda de que, anos depois de falecida, por ordem do amado, Inês teria sido coroada rainha e toda a corte obrigada a beijar-lhe a mão. Infrutífero esforço, Inês já era morta, tarde demais.

Em inglês, há expressão que cumpre o mesmo objetivo, a popular: “that ship has sailed” (esse navio navegou, zarpou), que quer dizer que uma oportunidade passou e não é mais possível, não há volta.

Problema resolvido, fica a reflexão. Enquanto uns veem uma mulher morta, outros veem um navio que se vai. Um é trágico; outro, algo poético. A pensar em como a língua nos afeta.

A maneira como vemos uma circunstância impacta nossa reação. O que queremos fazer, frente a uma situação que já não é possível? Chorar? Agir? Essas opções não são excludentes; sempre podemos fazer as duas, ou qualquer outra coisa.

Nascer, viver e submergir-se em uma cultura é, além de inevitável, bonito. Quando mudamos para outro lugar, levamos nossa família, nossa casa, nossa cidade, com tudo o que está aí.

Assim, também, nossa língua, com o sentido literal de cada palavra, bem como suas idiossincrasias, caminha conosco. Inês nos acompanha, mas sempre podemos incorporar o navio que vai. Não perdemos nossas raízes e adotamos a poesia que nos enriquece e amplia nossas crenças positivas.

Ana Maria Leal Salvador Vilanova é engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica

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