FALANDO SÉRIO

A Uberaba de outrora: o pescador de lembranças

Wellington Cardoso
Publicado em 22/07/2021 às 19:55Atualizado em 19/12/2022 às 02:44
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François Ramos – Redator Interino

Se tem uma estação do ano que eu nunca gostei é o inverno. Definitivamente, integro o grupo de brasileiros que não associa esse período do ano com uma oportunidade para “curtir” o frio e ficar elegante. Entretanto, é um momento que me traz boas recordações, em especial das férias escolares dos anos 80, que só lembrando, para a alegria da criançada e desespero dos pais, duravam o mês de julho inteiro.

Em um dia qualquer, depois de combinar com a turma de amigos, é claro, o despertador me colocava pra fora da cama às 5 horas da manhã. Apesar da árdua separação dos cobertores naquele friozinho ser necessária, ela era realizada com alegria. Eu pulava da cama animado e partia para o quintal da casinha em que eu morava, na avenida Alfredo de Faria, no Tutunas. Claro, já estava “armado” com um enxadão para procurar um bem precios minhocas.

 Não era preciso muitos minutos para encher logo uma daquelas latas de 1 litro que vinham com óleo de soja, mas, enquanto recolhia as minhocas, já dava tempo de sonhar com os “dourados” que iria pegar no rio Uberaba e ostentar com os amigos que as mães não deixavam ir (infelizmente, muitas vezes fiquei pra trás também).

Missão cumprida em relação às iscas, corria pra dentro e tomava um banho para tirar o barro do corpo. O ritual era necessário para dar aquele pulo no Bar do Célio e buscar pão. Enquanto isso, minha querida mãe/vó Mariinha preparava um café quentinho. Não sem resmungar um pouco, é verdade: “Queria ver essa disposição é pra estudar”! Como eu tinha muita dedicação à escola, mas estava de férias, eu nem ligava com a bronca. Afinal, era só um lembrete que a vida não era só alegria.

Findo o cafezinho, era hora de conferir a vara de pescar artesanal, feita de bambu colhido nas fazendas próximas e equipada com chumbada e anzol que os pescadores “profissionais” davam pra gente quando compravam equipamento novo. Logo começavam a chegar os primeiros amigos: Eduardo, Paulinho, Paulo Eduardo, Júlio e por aí vai. Assim que o primeiro “pelotão” estava reunido, descíamos pelo bairro Tutunas batendo à porta dos demais que moravam ao longo do caminho.

Ao passar pela capela/igreja de São José, a gente sempre fazia o nome do pai e pedia proteção. A caminhada durava uns quarenta minutos e cortava as terras que mais tarde se tornariam o bairro Jardim Uberaba. Sequer percebíamos que a temperatura naquele horário estava por volta dos dez graus. Todo mundo de short (bermuda era coisa de rico) e camiseta, ostentando um sorriso largo nos lábios e muito calor no coração.

Quando finalmente chegávamos às margens do rio, ainda havia forte neblina. Todos com muita expectativa para fazer uma fritada com os peixes que levaríamos pra casa. Mas isso nunca acontecia. No máximo, vimos o Eduardo fisgando o lábio do Júlio com o anzol em uma manobra radical de pesca. Rendeu uns três minutos de preocupação e uma “zoação” que já tem mais de trinta anos!

Peixe, que era bom, no máximo se conseguia alguns lambaris. Contudo, as águas do rio não eram poluídas, a natureza não estava destruída como agora. A linda paisagem fornecia o ambiente para muitas horas de problematizações bem distantes das que vemos entre as crianças e adolescentes de hoje: A Paty gosta mesmo do Deco? O mundo vai acabar no ano 2000? Verdade que já apareceram discos voadores em Uberaba? Sabia que o filho do Senhor Geraldo virou cambalhota embaixo da bananeira e virou lobisomem? E por aí vai... ou melhor, ia!

Era um período em que as amizades eram valorizadas a ponto de ninguém namorar irmã do amigo, pois era firme a crença de que mulheres havia mais, amigos de verdade, não. Paquerar as primas deles, por outro lado, era permitido e até incentivad assim o amigo entrava logo pra família e estaria sempre por perto. Mas isso é outra história, concentremo-nos na pescaria, que depois de duas a três horas de completa ausência de peixes acabava minando nossas esperanças de um almoço rico em proteínas.

Então, era hora de outra aventura. Mais alguns minutos de caminhada nos levava ao, na época, famoso “Pocinho da Alegria”. Eta lugarzinho gostoso! Infelizmente, nenhum de nós tem uma única foto de lá. Máquina fotográfica era um artigo de luxo, que poucos poderiam comprar. Mas, com certeza, as lembranças seguem vivas em nossa alma.

O poço era cercado por uma vegetação rasteira, com muitas flores de cor laranja, não me recordo o nome, mas eram bem comuns na cidade. Com a urbanização acelerada, elas simplesmente desapareceram de nossas paisagens. Outro atrativo era a presença do milho de grilo (“midigrilo” em bom mineirês), que apresentava pequenos cachos de um fruto miúdo com polpa adocicada. Não sobrava nem para os passarinhos!

Falando em aves, taí outro ponto interessante das nossas aventuras oitentistas. Todos aqueles que integravam o nosso grupo e tinham mais de dez anos carregavam no pescoço ou na cintura um estilingue (também conhecido como atiradeira, bodoque) com goma de macarrão. Contrário ao que muitos poderiam pensar, ninguém da turma gostava de caçar passarinho. Usávamos mesmo era pra “caçar” manga ou espantar as cobras d’água que apareciam próximas aos rios e córregos em que costumávamos nadar ou pescar.

No Pocinho da Alegria a gente colocava os estilingues sobre alguma pedra, junto com as camisetas e calçados (quem tinha, muitos andavam de pé no chão mesmo). Nem parecia ser inverno. Apesar de a água chegar apenas na cintura, os “saltos mortais” faziam parte da brincadeira daquela molecada, que, apesar de fazer muito barulho, nunca recebeu um único chamado de atenção dos proprietários daquela roça tão querida por nós.

O poço ficava próximo a um ponto no qual as poucas cabeças de gado bebiam água. Também havia alguns comedouros e uma moenda de cana. Aliás, vez por outra a gente passava por outra fazenda e “pegava emprestado” um pouco daquelas delícias e levava para o Senhor Onofre moer pra gente. Era meio a meio. Pensa no tamanho da barriga depois de tomar garapa naquelas canecas gigantes, feitas com lata de extrato de tomate, que na época eram bem maiores que as de hoje. Em uma justa homenagem, muitos chamavam o “Pocinho da Alegria” de “Pocinho do Senhor Onofre”.

Depois daquelas horas de muita alegria e pulos que dariam inveja na seleção olímpica de saltos ornamentais, era hora de “subir o morro” ou “montar no porco”, como dizíamos na época. Contudo, antes era preciso fazer as camisetas de rede para pegar algumas “marias-barrigudas” e peixinhos coloridos semelhantes ao lebiste, para colocar em vidros que, em casa, improvisávamos de aquário. Alguns se arriscavam, também, a procurar cascudos nas locas ali existentes.

Apesar dos perigos alertados por nossos pais antes de sairmos de casa, o passeio era sempre tranquilo. A turma era composta por crianças e adolescentes de dez a 14 anos. Os maiores cuidavam dos menores, que por sua vez freavam as “artes” dos adolescentes apenas com a força da palavra: sua mãe vai te matar!

Foi assim que nenhum de nós sofreu acidentes mais graves. Eu, por exemplo, “só” levei quatro pontos no pé ao balançar em um cipó, achando que era o próprio Tarzan ao pular no córrego. Uma pedra se encarregou de acabar com minhas expectativas de herói. Dona Mariinha não me matou, mas a “coça” foi caprichada nesse dia!

Ninguém, graças a Deus, chegou a ser picado por aranha, escorpião ou cobra nessas aventuras. Embora uma vez tenhamos corrido uns quinze minutos até sair do mato, depois que nosso amigo Anderson Carneiro (vulgo Roceiro) gritou que uma capitão-do-mato (jaracambeva) estava atrás dele. Passou por nós como um foguete e fomos no embalo sem olhar pra trás. Cá pra nós... acho que aquele “cabra” estava de sacanagem com a gente!

A volta pra casa era feita já combinando o retorno no dia seguinte, pois a falta de sorte com os peixes era sempre um acaso do destino. Mas a verdade é que todos queriam mesmo era uma vez mais estar juntos, aproveitando as férias de inverno. Todavia os planos poderiam mudar até o final do dia, pois também tinha a possibilidade de deixar a pescaria para outra hora e partir para uma pelada no campinho de terra, que ficava bem na entrada do bairro Tutunas.

Aliás, o que não faltava era opção. Dava para jogar biloca (bolinha de gude), bafo (com a figurinha de chiclete), cabo de guerra, futebol de botão, soltar pipa, fazer bolhas de sabão com talo de mamona e até mesmo promover a inclusão (sem conhecer o conceito) brincando de queimada com as meninas, que naquela época não tinham a mesma liberdade que a gente.

 Verdade seja dita, se você, assim como eu, experimentou uma infância e adolescência tão rica, hoje se recorda do tempo em que a gente era feliz com pouco ou quase nada (e sabia)!

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