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Do que eu falo quando eu falo de bebidas

Pirajuba vivia de cara amarrada, feia. E balbuciava. Resmungava aquelas frases incompreensíveis...

Luciano Bitencourt
Publicado em 14/09/2017 às 20:36Atualizado em 16/12/2022 às 10:32
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Pirajuba vivia de cara amarrada, feia. E balbuciava. Resmungava aquelas frases incompreensíveis, que eram mais incompreensíveis do que as frases do Meio Quilo – de quem se entendia apenas a expressã Rolling Stones, yeah! Raquíticos, o diálogo entre ambos era o que se podia chamar de uma conversa de peso. Mas peso pesado era o Eduardo Bundinha que, além do debate político, carregava um protuberante background musical com infindáveis sugestões para o Moacir. O saudoso Moca, por sua vez, sempre irreversível. Bundinha dizia: Paulo Diniz, ele colocava Tim Maia – ao vivo; Premeditando o Breque, ele colocava Tim Maia – ao vivo; João Donato, ele colocava Tim Maia – ao vivo. Então, o Tonho intervia: Dave Brubeck, pô! E o Moca se prontificava imediato, afinal Take Five era Take Five. Quando o argentino Jorge Luis Borges escreveu “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”, provavelmente sonhava com as estantes de livros do Tonho – que eram guardados na casa incrustrada na vilinha da Rua Artur Machado. Se discutir literatura com o Tonho configurava ato camicase, imagina só discutir jazz. Tinha que ter muita paciência, a mesma que os irmãos Luciano e Léo Tupaciguara tiveram para ler parte daquela coleção. O Nãna estava pouco se lixando para essas obras, preferia a moda de viola, uma caixa de cerveja, um pouco de uísque e algumas doses de Campari. Era o momento em que ele olhava para a mesa na ponta do balcão e percebia que o queixo do pai do Serginho e do Saulinho entortava proporcional aos copos entortados. Aí, Nãna virava poeta. Não mais – é óbvio – do que o Ismael Magrelo ao apear daquela motocicleta DT 180, barulhenta e desagradável, declamar o tal “Boneco humano, palhaço de pano...” e revelar o seu destino final: o Pai! Nessas horas, o Tonhizé evocava Noel Rosa e comentava com o Leão o resultado do futebol. No início da década de 1990, havia muito que se falar mal da amarelinha. Até que por uma questão incontinente do tempo chegava ao fim do ano e com a data o José Maurício Bunazar. O mesmo Zé que depois do 72° Hollywood continuava a se questionar: como é que pode no meio de tanto alienígena surgir um Francisco Petrônio, aprendiz glorioso de coxinheiro? Dona Marcelina, na sua habitual diplomacia, negociava para que a resposta ficasse para outro dia, uma vez que já se passavam das 22 horas e era 24 de dezembro. Enquanto isso, Mamute rangia os dentes e o Josino se esforçava para abrir os olhos. Com Itamar Assumpção nas caixas de som, ninguém queria se despedir, tomar a saideira ou ir embora para a casa. Foi o eterno Yassú que puxou definitivo a fila. Antes, a Rô analisava, Aninha gargalhava. Por fim, trôpegos, todos se levantaram e, sem mais nem menos, ou aviso prévio, as portas da Tristão de Castro esquina com a Raul Terra foram cerradas. Nesse dia, o Pirajuba foi o último a ser atendido e saiu de lá exatamente do mesmo jeito que entrou: com fé no bicho, de cara amarrada, feia e balbuciando aquelas frases incompreensíveis.

(*) Filósofo e escritor

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