ARTICULISTAS

O reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem

Mônica Cecílio Rodrigues
Publicado em 25/05/2020 às 14:26Atualizado em 18/12/2022 às 06:33
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Feliz foi Pessoa que expressou através de seus heterônimos. E não faço oculto o desejo de ter um, talvez para manifestar as ficções que povoam a mente, em tempos de pandemia... 

A escrita jurídica não permite expressar, por vezes, as divagações que insistem em permear o pensamento, mesmo quando em quarentena; mas é por estes e outros motivos que podemos agora analisar, que alguns julgados atuais poderiam ser considerados surreais no passado.

O direito de família sempre se pautou pela rigidez das normas, inflexibilidade dos conceitos e pelas regras cogentes que não admitem variações.

Pois bem, recentemente, a Corte Superior adotando um posicionamento que condiz com a nova linha do direito de família, onde os direitos estão menos monetarizados e mais emocionalmente valorados, admitiu o reconhecimento da filiação socioafetiva, mesmo após o falecimento do “pretenso” ascendente.

Obvio que esta nova direção tomada nas decisões que dizem respeito aos direitos que envolvem os laços filiais muda completamente a linha que era seguida pelos tribunais e pelas Cortes Recursais anteriormente. Mas não devemos nos espantar e nem ao menos entender que tal comportamento trará insegurança jurídica aos envolvidos. Muito pelo contrário, o que antes era visto e decidido com pouca elasticidade, agora, com um novo rumo, eleva o sentimento, com a devida importância nas relações filiais.

E é o caso em análise, quando o Superior Tribunal admite o reconhecimento socioafetivo da filiação post mortem. O que significa dizer em suscinta explicaçã o cidadão tratado como filho poderá requerer junto ao Poder Judiciário o reconhecimento como tal, mesmo após a morte daquele que o considerou descendente.

É evidente que deverá cumprir os pressupostos fáticos para alcançar tal pretensão, que sã a vontade inequívoca do “ascendente” em ter como filho aquele cidadão; o tratamento filial dispensado durante a convivência; o conhecimento público de que a relação caracteriza filiação e a utilização do sobrenome paterno ou materno como se filiação já existisse, tudo podendo ser comprovado por testemunhas e prova documentaL

A própria Corte já decidiu que podem coexistir a paternidade biológica com a socioafetiva; portanto, mesmo que existente no registro de nascimento a filiação biológica é possível a busca pelo reconhecimento da filiação socioafetiva.

Quando ressalvo a impossibilidade deste direito tempos atrás, e que agora se faz possível, devemos receber como uma evolução valorativa aos verdadeiros valores da relação filial. Porque, a filiação pode até nascer da descendência biológica, mas ela perdura, fortalece e perpetua com os laços afetivos que se desenvolvem ao longo da Vida.

Calcados nos princípios do melhor interesse da criança, da dignidade da pessoa humana e ao direito à busca da felicidade, as modificações havidas caracterizam a valoração e respeito ao sentimento desenvolvido ao longo da convivência, garantida através desta prova direitos iguais aqueles que descendem geneticamente.

Não poderá haver dúvida quanto ao desejo da filiação por parte de ambos os envolvidos, pois quando a Corte julga, julga com vistas a proteger o vínculo filial criado pela tratativa, mas que não pode se consolidar ou ser legalizado por questões alheias a vontade de ambos; ou até mesmo por este vínculo ter sido interrompido pela morte de qualquer deles.

Sem sombra de dúvida a boa-fé será analisada profundamente, haja visto os reflexos patrimoniais que podem advir do reconhecimento da filiação socioafetiva e também para coibir qualquer intenção que desvirtue o verdadeiro significado deste tipo de filiação.

Pois não se pode confundir solidariedade humana com o desejo de paternidade, ambos são sentimentos nobres, mas com sutis diferenças legais e que resultam via de consequência em direitos diversos e opostos.

Dra. Mônica Cecílio Rodrigues – advogada, doutora em processo civil pela PUC-SP e professora universitária

 

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