ARTICULISTAS

Mordaça Seletiva

Em 1978 trabalhei por 45 dias na Ponte da Amizade, que liga o Brasil ao Paraguai

Márcia Moreno Campos
Publicado em 05/10/2019 às 10:58Atualizado em 18/12/2022 às 00:47
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Em 1978 trabalhei por 45 dias na Ponte da Amizade, que liga o Brasil ao Paraguai. Eu tinha acabado de entrar na Receita Federal, era nova e inexperiente, e me aventurei nesse trabalho temporário de fiscalizar o trânsito de pessoas e mercadorias entre os dois países. Já no primeiro dia um tarimbado fiscal de Foz de Iguaçu ficou ao meu lado, e quando passava por mim uma senhora idosa de procedência asiática, trazendo consigo 6 potes de creme Nívea, ele imediatamente os apreendeu na maior agressividade e sob apelos e lágrimas da senhora. Essa atitude me marcou muito e também a fala dele de que “a lei é para todos, e que aquela senhora era contrabandista”. Lembrei disso nesse momento crítico do país em que estão tentando imunizar uma casta de privilegiados, colocando-os acima da lei. Imunidade é uma prerrogativa constitucional, ou pelo menos era. 

A decisão do STF de paralisar investigações em curso e exigir punição aos auditores da Receita Federal que as realizavam é preocupante, pois cabe à própria Instituição cuidar da impessoalidade e necessidade de suas fiscalizações. Essa atitude foi copiada pelo TCU ao solicitar a remessa por parte da Receita dos nomes de todos os políticos e membros do Judiciário objetos de investigação. Desanimador também o pedido feito pelo filho do presidente da República e acatado pelo presidente do Supremo de barrar fiscalizações baseadas em compartilhamento de dados pelo antigo Coaf, hoje esvaziado, renomeado e deslocado para a guarda do Banco Central. São inúmeros os benefícios advindos da cooperação e troca de informações entre os vários órgãos de investigação, que infelizmente estão sendo cada dia mais cerceados. Os aplausos vão para fiscalizações de cidadãos comuns, preservando os intocáveis e seus familiares, que contam com toda sorte de recursos e manobras à disposição do paciente. O combate à corrupção é bandeira eleitoreira, porém, quando as buscas e apreensões atingem um membro do Legislativo, líder do governo no Senado, a coisa muda de figura. Sem qualquer constrangimento, senadores foram em périplo até o Supremo exigir providências. Na mais recente derrota para a operação Lava-Jato, o mesmo Supremo deu ganho de causa a réus condenados, porque os processos não obedeceram a um detalhe de ordem na fala dos delatados e delatores. Também foi aprovada a Lei de Abuso de Autoridade e os tímidos vetos do Executivo foram derrubados.

Abomino o abuso de autoridade e sei que ele existe e faz vítimas. Porém, acredito que a forma de coibir abusos não é amedrontando bons funcionários, mas agilizando punições aos maus, sem o espírito de corpo característico das corporações. Muito se avançou no Brasil no combate à corrupção. Retrocessos não são bem-vindos. É intolerável aceitar mordaça seletiva. Que a lei seja para todos, de forma clara e inequívoca, e não apenas uma utopia.

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