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A louca da rua das Perdizes

A primeira vez que eu a encontrei foi em uma noite de sexta-feira bem quente, por volta das 22h...

Danilo Lima
Publicado em 10/10/2016 às 07:54Atualizado em 16/12/2022 às 17:03
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A primeira vez que eu a encontrei foi em uma noite de sexta-feira bem quente, por volta das 22h. Eu me espantei ao ver uma senhora sozinha e de pijama àquela hora, na rua. Passei por ela e a cumprimentei com um “boa noite”; recebi como resposta um olhar vago, apenas isso. Abri meu portão, dei uma última olhada e lá ela ficou parada de braços cruzados.

Célia Regina era bem magra, uns 60 anos, seus dedos finos e bem compridos, as unhas sempre bem feitas e com tons fortes. Seu rosto era pouco convidativo, olhos castanhos, olheiras profundas, cabelos sempre bem amarrados, nenhum fio fora do lugar. Nunca a vi de maquiagem, exceto no enterro do velho marceneiro Antônio, da rua de cima. No dia do sepultamento fez questão de ir até o cemitério para se despedir do responsável pela sua primeira cama de madeira. Isso ela fazia questão de repetir a todos os familiares que se debulhavam em lágrimas, para ela uma espécie de conforto e gratidão. O seu perfume era demasiadamente forte e doce, era assim em todas as horas do dia, impossível não notar sua presença.

Gostava de ficar sentada na pracinha, no final da rua, sempre com um pequeno livro de capa preta na mão, assoviando músicas e cantigas aleatórias. Invariáveis vezes eu “topava” com ela na esquina, sempre com o mesmo aspecto. Dizer um “oi” era bem estranho, era como se você estivesse no deserto do Saara, sozinho, e gritasse: “Tem alguém aí?” Mesmo sabendo que não receberia qualquer vaga resposta.

Certo dia a encontrei de modo ainda mais estranho, ao meio-dia, na mesma esquina. Estava de cabelos soltos e bagunçados, maquiagem extravagante, olhos marcados, batom rosa borrado, vestido vermelho, sapato alto e uma meia calça preta já rasgada, mas desta vez estava acompanhada de um senhor magro e alto.

Passei rapidamente pelos dois, pareciam discutir algo em tom ameno. Enquanto procurava as chaves dentro da bolsa, reparei que o senhor tentava convencê-la a ir para casa, seus gestos apontavam algo que eu não consegui compreender. Ela gesticulava coisas e parecia pedir para ficar mais alguns minutos, como se estivesse esperando alguém. Passaram-se alguns instantes até que consegui encontrar a chave e entrar em casa.

Depois daquele dia, nunca mais a vi, nem na esquina, na praça ou em qualquer outro local. Encontrei na fila da padaria apenas o senhor que a acompanhara dias antes, então quis saber como estava a dona Célia Regina. Ele, com voz serena, respondeu que estava bem e descansando. E que os familiares haviam finalmente conseguido convencê-la a ir tratar seus problemas psicológicos em um lugar “apropriado”. Perguntei qual era o seu problema, ele contou que desde a separação do marido, um caminhoneiro galanteador, há mais de 30 anos, ela sempre esperava na esquina por sua volta. Ele havia escrito em uma de suas últimas cartas que quando retornasse esperaria por ela no mesmo local em que os dois se apaixonaram décadas atrás: a esquina da rua das Perdizes. Nunca mais foi mesma.

Recebi com pesar aquela notícia. Imaginei como seria monótona a vizinhança sem a “louca da rua das Perdizes”, aquela esquina por onde “passavam” histórias imaginárias e expectativas, hoje estava verdadeiramente vazia, viam-se apenas carros, motos e solidão. Qualquer hora em que eu passasse por aquele cruzamento, não haveria mais o perfume doce e o olhar para o “nada”. Célia Regina não conseguiu exatamente a “carona” que esperava silenciosamente havia anos e, muito menos, o tão sonhado reencontro com seu amado. Desde sua partida, Célia Regina e eu estamos um pouco mais loucos.

Danilo Lima – Jornalista

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