ARTICULISTAS

A morte contravertida

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 23/11/2021 às 22:13Atualizado em 18/12/2022 às 17:05
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Há pouco assisti pelas redes sociais um velório diferenciado. Ao invés de choros e lamentos, havia música dançante, bebida à vontade e muita alegria! A explicação dos organizadores da festa era que o morto curtia festas e assim gostaria de ser velado e lembrado. Ainda não soube de outra despedida ao morto como essa, mas gostaria de refletir sobre a realidade atual deste rito cultural, lembrando que nosso momento enquanto sociedade que se relaciona proibiu a tristeza, o choro, a manifestação da dor psíquica através da medicalização da depressão em qualquer nível. Se é impossível controlar a manifestação dolorosa, oferecem-se comprimidos.

A sociedade atual expulsou a morte para proteger a vida. Proibiu o choro para preservar a alegria desvairada, escondeu a morte porque é vergonhosa, suja e inconveniente. A morte é fracasso, impotência ou imperícia. O local da morte foi transferido do lar para o hospital. Atualmente, a maioria das pessoas não veem os parentes morrerem. O hospital esconde a repugnância e os aspectos sórdidos da doença. A família também fica afastada, para não incomodar o silêncio, para não atrapalhar o trabalho dos médicos, para não tornar visível a presença da morte através das lamentações, choros e questionamentos.

Pelos textos de David Azoubel Neto, conhecemos os ritos, lendas e costumes dos índios Carajás. Quando morre um membro da tribo, os índios expressam o seu pesar e a dor de uma forma mais ou menos ruidosa. O velório é caracterizado pelo choro dos familiares e, em geral, dos circundantes. Depois do sepultamento, a família cuida para que não falte água, alimento e fumo durante vários dias. O morto continua sendo pranteado pelos parentes por meses. As pessoas da família revezam-se num choro que é mais um lamento cantado, no qual ocorrem frequentemente acusações a alguém que teria sido responsável direto ou indireto pela morte.

Este costume indígena é frontalmente diferente do nosso nestes dois últimos séculos, onde há uma supressão do luto, escondendo a manifestação ou até mesmo a vivência da dor. Há uma exigência de domínio e controle, pois a sociedade não suporta ver os sinais da morte. No entanto, a essência da angústia humana é a extinção, o medo da morte, da destruição do eu e do próprio corpo o que torna a busca do significado da vida, do sofrimento e da morte a essência da motivação do homem. A morte faz parte da vida e, se a ignoramos ou impedimos seu luto, já não vivemos.

Num mundo de instantâneos e não mais de retratos ou fotos da vida onde o clique do celular registra e apaga facilmente até mesmo o aqui e agora; acrescido da medicalização compulsiva da dor; onde os antidepressivos são oferecidos na bandeja ao alcance e consumo de todos, estamos num mundo de fantasia na ilusão da imortalidade sem sentimentos.

Ilcea Borba Marquez

Psicóloga e psicanalista

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