ARTICULISTAS

Experiência mórbida da pandemia

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 15/04/2020 às 17:53Atualizado em 18/12/2022 às 05:38
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Se José Saramago nos convida a uma reflexão sobre a essência humana, o que somos e não o que pensamos ser no texto “Ensaio sobre a cegueira”, a experiência mórbida da pandemia nos coloca na realidade do fato. Estamos na Pandemia do Coronavírus, experimentando na pele as fases descritas por ele no referido livro, o que nos faz lembrar constantemente os personagens e as situações traumáticas descritas.

De repente, no trânsito, alguém à direção de um carro não enxerga mais, apenas experimenta uma claridade branca impeditiva à discriminação sensível do real. Ao mesmo tempo uma mulher de óculos escuros procura um oftalmologista porque não consegue enxergar, e, ao sair do consultório médico, ele também está cego. As cenas são rápidas, dando a impressão de que se trata de uma epidemia que contamina a todos e inicia um processo de impossibilidade de viver num mundo sensível, estruturado aos que podem enxergar.

Gradativamente todos se tornam cegos e sentem um medo atroz – o medo os cega e o medo os fará continuar cegos. Pelo comodismo, o homem tenta se habituar a tudo, seguindo a vida tal como era ou como a conhecia, não se dando conta de que deixou de ser pessoa. O governo ainda em exercício tenta manter a ordem, a solidariedade entre as pessoas, a relação organizacional do ambiente, protegendo os necessitados que serão encaminhados para um manicômio desativado – segregação e isolamento social.

As coincidências com o tempo atual são claras: de repente um vírus se espalha rapidamente pelo mundo, pegando todos de surpresa e despreparados. O governo, usando do seu direito e dever de proteger as populações que necessitam, coloca todos imediatamente de quarentena – separados e isolados – em nome de uma contaminação maciça e risco de morte iminente. Apenas os serviços essenciais são mantidos dentro de critérios específicos de regularização do espaço e da utilização de equipamentos de segurança pessoal para manutenção da vida. As medidas são inesperadas e peremptórias, a população é massacrada pelas ações que os conceitos repetidos indefinidamente e rapidamente postos em prática impedem o pensamento de exercer seu papel, através do raciocínio lógico e comparativo. São muitas informações desordenadas e contraditórias dadas ao mesmo tempo que confundem mais do que esclarecem, impedindo que se veja o mundo tal como é realmente – “um brilho que cega!”. Aos poucos acompanhamos o desmoronamento moral pela perda de valores, de um referencial comparativo que discrimine a boa informação da má. Os velhos se rebelam, os bandidos assaltam, o luto pelas perdas é compartilhado por todos.

Ilcea Borba Marquez

Psicóloga e psicanalista

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