ARTICULISTAS

O desafio de se tornar sujeito

O homem apreende o Outro como uma instância estrangeira, francamente hostil

Ilcéa Borba Marquez
Publicado em 27/08/2019 às 18:38Atualizado em 17/12/2022 às 23:46
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O homem apreende o Outro como uma instância estrangeira, francamente hostil, desconhecendo que ele é, na realidade, a estrutura simbólica da linguagem que o constitui ele mesmo como sujeito e que, sem esse Outro, ele não existiria, posto que não pode retornar à condição animal. Ainda que se revoltando contra o Outro simbólico da linguagem (por meio de todas as figuras imaginárias que o representam: cultura, civilização, mundo, leis), o homem se revolta de fato contra aquilo que o faz homem.

O Outro da linguagem não é o Outro do biológico que salva da morte o ser primitivo impotente. A experiência do “abandono original” não tem por significação mostrar que “a criança do homem” só consegue sobreviver graças aos cuidados da mãe. Para o homem, a falta do Outro significa uma morte não do biológico, mas do “ontológico” sob a forma de “catástrofe espiritual” de psicose. O Outro primordial tem por função essencial introduzir a criança no mundo da metáfora, onde os objetos primordiais em virtude de uma necessidade lógica que enuncia que a manutenção do narcisismo secundário (a do “eu”) está subordinada ao sacrifício do narcisismo primário. Assim, podemos concluir que um homem que recusasse essa necessidade se impediria da cultura e seria impensável como humano. Como exemplo, podemos lembrar o caso da criança-loba que se identificou tão bem com os membros da horda que corre e uiva como lobo. Nesse caso, o biológico sobreviveu à economia do Outro da linguagem, logo ao desastre do humano.

A função do Outro da linguagem é de inscrever no sujeito desde seu nascimento a limitação, o corte sem o qual não existiria sujeito. A retirada do seio – o desmame – vivido originalmente como parte integrante da criança e a exigência do controle dos esfíncteres marcam o sujeito de uma borda que metaforiza o signo da morte. Pela sanção da linguagem, o ódio suscitado na aparição do semelhante é assim recalcado e volta invertido sob a forma de amor pelo próximo. O sujeito vive a limitação como uma ofensa ao seu narcisismo e se revolta. É importante lembrar que ele não se revolta com o fato de não encontrar alimento para apaziguar sua fome; nem tampouco com o frio, e sim contra o fato de não ter com que se cobrir. Eis porque, reproduzindo o modo de defesa utilizado contra as agressões vindas do mundo exterior, ele pode recorrer à retirada eremita, longe da civilização, ou se encarregar mais radicalmente de subverter a lei do Outro ao assegurar a manutenção do seu narcisismo pelas vias da perversão. Esta é uma negação do corte e da morte.

(*) Psicóloga e psicanalista

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