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Kafka na Justiça Brasileira, a hora do espanto

Certa feita, ouvi um professor de teatro afirmar que o teatro deve causar espanto

Wagner Dias Ferreira
Publicado em 13/06/2019 às 21:11Atualizado em 17/12/2022 às 21:35
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Certa feita, ouvi um professor de teatro afirmar que o teatro deve causar espanto, para produzir reflexão e influenciar comportamentos, mas, em tempos contemporâneos, a realidade está causando mais susto ainda. Hoje, com as vivências de advogado, é impossível não testemunhar o enorme espanto que a realidade tem causado. 

No dia 02 de outubro de 2013, um pai de família perdeu seu filho vitimado pela violência urbana. Como gostam de registrar os veículos de comunicação, a vítima possuía passagens policiais. Isso parece transmitir uma tranquilidade às pessoas no sentido de pensarem que, por não terem vivência criminal, estariam mais seguras.

Aquele pai já idoso ligou para outro filho informando o acontecido e pediu que viesse dar apoio as providências iniciais.

Ao chegar no local, já próximo ao momento da remoção do corpo, esse irmão da vítima seguiu no rabecão (nome dado ao veículo de remoção de cadáveres). Tendo permanecido no Instituto Médico Legal (IML) até a liberação do corpo e durante os preparativos iniciais para o sepultamento.

Algum tempo depois desses eventos, o irmão da vítima é surpreendido por uma ação penal com acusação de tentativa de homicídio de um homem que dizia ter sofrido disparos de arma de fogo do irmão da vítima falecida, contra o veículo onde se encontrava.

Uma situação totalmente kafkaniana. Já que o conhecido termo “kafkiano” refere-se a algo complicado, labiríntico e surreal, como as situações que aparecem nos livros do escritor Franz Kafka.

Não foi apresentado o veículo contra o qual foram feitos os disparos para ser periciado. E o motorista e dono do tal veículo não se apercebeu de tais disparos.

E a principal testemunha de defesa era um policial civil, que figurava como motorista do rabecão, e que poderia demonstrar clara e inequivocamente que, no horário do suposto evento, o homem acusado estava no IML. Esse motorista chegou a comparecer para uma audiência onde faria a prova inequívoca da inocência, mas não foi ouvido por uma questão técnica.

Em outro momento, o policial civil motorista não pôde comparecer porque adoecera e estava totalmente incapacitado de depor, sem previsão se iria se recuperar e em caso de recuperação quanto tempo demoraria.

O processo foi a julgamento nestas condições e o juiz entendeu que somente o plenário do júri poderia resolver a questão.

Com o recurso desta decisão, o Tribunal findou a síndrome de Kafka.

A decisão do juiz inicial foi reformada e o homem acusado daquele crime inexistente e improvável foi “impronunciado” – palavra usada para dizer que aquela situação e a pessoa acusada não serão levados a julgamento perante o Tribunal do Júri –, neste caso, porque não há provas de ter ocorrido o crime e nem de que o homem acusado o tenha praticado.

Isso permite ao cidadão, mesmo espantado, seguir acreditando que alguma justiça é possível. 

(*) Advogado criminalista

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