ARTICULISTAS

Carnaval – as duas faces da máscara

Osmar Baroni
Publicado em 26/02/2022 às 12:08Atualizado em 18/12/2022 às 18:24
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Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra “carnaval” vem do italiano carnevale. No mundo cristão medieval, período de festas profanas que se iniciava no Dia de Reis e se estendia até a Quarta-feira de Cinzas, dia em que começavam os jejuns quaresmais. Consistia em festejos populares e manifestações oriundas de ritos pagãos, como as festas dionísicas, e se caracterizava pela alegria desconcertante, pela eliminação da repressão e da censura, pela liberdade de atitudes críticas e eróticas. No palavreado hodierno, o povo “chutava a lata”.

O tempo foi passando e nossos irmãos portugueses cada vez mais se aproximando de nós, até que num belo momento resolveram trazer o carnaval para o Brasil, inaugurando aqui o costume dos Bailes de Máscaras nos teatros, sendo o primeiro deles realizado no Rio de Janeiro, em 1840. Os desfiles de carros alegóricos surgiram quatorze anos depois na mesma cidade, tendo como patrocinador o escritor José de Alencar. Até que a música própria tomasse lugar relevante na festança, os foliões da época dançavam e cantavam nas ruas quadrilhas de autores desconhecidos, ao som de instrumentos de percussão, porém, nos salões, os instrumentos mais sofisticados davam o tom e apelavam para músicas europeias: polcas, xotes, mazurcas, entre outras.

A música carnavalesca por excelência nasceu em 1899, quando Chiquinha Gonzaga criou Ó Abre Alas, até hoje “carro-chefe” de inúmeros carnavais. Por questão de justiça, cumpre ressaltar que, antes, o intrigante Zé Pereira já ecoava por vozes uníssonas provocadas por instrumentos de sopro.

Fui apresentado ao carnaval nos longínquos 1936, em Ribeirão Preto. Agarrado pelas mãos de meus pais, assistíamos ao desfile das Escolas de Samba daquela cidade, nas adjacências da Praça XV de Novembro, quando de repente me soltei e saí pulando atrás dos componentes ao som contagiante da batucada. Ernesto e Ernesta quase enlouqueceram.

Quando jovem, formávamos um bloco com cinco rapazinhos, cada um com instrumentos apropriados e, naquela mesma praça, fazíamos uma espécie de aquecimento até chegar o momento de irmos para o baile da Sociedade Recreativa de Esportes, clube que não permitia a entrada para menores de 18 anos. Nada complicado para o autor do caprichado bigode, que colocava em dúvida os austeros diretores, que se revezavam como porteiros daquele elegante local de diversão.

Saí do baile ao amanhecer, entrei na igreja São José, onde recebi a unção das cinzas na testa. Contudo, somente em casa, advertido por mamãe, notei a quantidade de confetes grudados nos cabelos. Que vexame!

Implacavelmente, as fases comportamentais avançam na vida com velocidade incrível e a conduta, conforme educação recebida, nos escancara o caminho a ser seguido. Muitos anos mais tarde, bigode natural, e a convite do intrépido dr. Ney Junqueira, ocupei o cargo de Diretor Social do Jockey e junto com dinâmicos companheiros realizamos notáveis carnavais, que relembravam a pujança de diretorias anteriores.

Parece ter sido ontem (põe ontem nisso) que o carismático Nenê Chaparral montou sua casa de show no final da avenida Alexandre Barbosa para receber os apreciadores não só de sua deliciosa comida, como também surpreender seus frequentadores com artísticos shows musicais. Num desses, contratou o genial Jamelão, consagrado cantor no Brasil e no exterior.

Casa lotada, eu e Helvecinho Moreira (grande baterista), com nossas respectivas esposas, não poderíamos deixar de “assinar o ponto”. No palco, um eclético conjunto animava o ambiente e, enquanto aguardava sua apresentação, o cantor saboreava umas geladinhas, ocasião em que autografou meu pandeiro.

A fim de se sentir seguro, é comum que cantores ou cantoras nas apresentações desse modelo de show levem seus próprios acompanhantes musicais; no caso, Jamelão trouxe um famoso violonista. Após o segundo samba... a surpresa: seu empresário, pressentindo a necessidade de pandeiro no acompanhamento, arriscou... sinalizando para que eu fosse me agrupar com o violonista. Subi ao palco e, disfarçado de calmo, pertinho dele, ouvia: “Ela disse-me assim/Tenha pena de mim? Vai embora...”, composto por Lupicínio Rodrigues e gravado em 1959.

Ao término da apresentação, criei coragem e indaguei: “Mestre, como faço para desfilar na Mangueira?”. Sem muitas palavras e com discreto sorriso, retirou do bolso um cartão e disse: “Fale com a Zica” (esposa do cantor e compositor Cartola e presidente da Estação Primeira da Mangueira). Dia seguinte, do outro lado da linha, da sua residência no morro da Mangueira, conversava com Dona Zica, que designava à sua neta a missão das informações necessárias a fim de que as costureiras da escola pudessem confeccionar a fantasia e outros detalhes mais, como local e hora de chegar na “concentração” e samba-enredo decorad “Se todos fossem iguais a você”, em homenagem a Tom Jobim. Tudo pronto! Cancelas liberadas para a entrada na avenida Marquês de Sapucaí, eis a Mangueira conduzida pela potente voz de Jamelão, sob o magnetismo alucinante de uma plateia em delírio, que saúda a Escola com o famoso “Já ganhou! Já ganhou!”.

Dias depois, durante uma miríade de palavrões dos adeptos e dos diretores da mais popular Escola de Samba do Brasil, para desespero da verde-rosa, a escola obteve o terceiro lugar.

Osmar Baroni

Cirurgião dentista; integrante da Academia de Letras do Triângulo Mineiro

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