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A solidão

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 25/04/2022 às 22:17Atualizado em 18/12/2022 às 19:31
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A solidão é uma coisa complicada. Para uns, é uma dádiva; para outros, é um flagelo. Pior é quando os dois grupos se topam. O atrito costuma ser inevitável.

Imaginem duas situações, ambas num domingo à tarde, dia ocioso, ar parado, um calor dos diabos, a chuva ameaça, mas não vem; nada para assistir na televisão, nada que justifique sair de casa ou tomar as ruas para fazer a revolução. Um daqueles dias em que temos a sensação de que não vamos fazer nada que preste. Ou melhor: não faremos nada do que é preciso fazer e muito menos o que gostaríamos de fazer. Que tristeza!

Num dia assim, o tempo não passa, a solidão se agrava e se torna um problema social. Não sei se para entendê-la é suficiente descrever o comportamento dos dois indivíduos hipotéticos que ilustram este texto. Mas vamos tentar.

Um deles está na porta de casa, de calção, camiseta, copo de cerveja numa mão e celular na outra. O sujeito parece inquieto, sem rumo, entra e sai do interior da casa, provavelmente para manter o copo sempre cheio. Talvez procure alguém, uma companhia, um cachorrinho, sabe-se lá! Não confundir com depressão, ainda que uma sensação de desamparo não esteja descartada.

Vamos às particularidades do fat após o almoço, o sujeito acima dedicou pelo menos duas horas do seu precioso tempo para limpar o carro. Puxou a mangueira d’água para fora, municiou-se de bucha e sabão, ligou o som em alto volume e mãos à obra. Visto de longe, parecia que conversava com o carro, fazia-lhe carinho. Terminado o serviço, puxou um banquinho e por ali continuou, com o copo na mão. Até aí, temos um sujeito zeloso de seu automóvel, o que incomodava o outro era o som alto da música repetitiva: antes, durante e após a lavada. E daí se isso importunava os outros! E daí? O zeloso e solitário lavador compartilhava seu som com mais gente, talvez o bairro inteiro, o país e o mundo todo se pudesse – e se tivesse caixas de som mais potentes.

E o outro? Trata-se de um bisbilhoteiro, ou melhor, o outro era eu, querendo descansar um pouco no que me restava do domingo. Se fossem caracterizar a solidão que me assolava, poderiam dizer que eu apresentava desconexão, não conseguia articular o pensamento, construir frases inteligíveis, desenvolver alguma ideia coerente e edificante para fazer alguma coisa que prestasse. Confesso que estava confus quem aguenta um barulho desses? Devia chamar a polícia ou jogar pedra? Deveria lavar louça ou assistir a um filme? Dançar um tango ou um samba? Dormir nem pensar. Querem saber? Para não perder a dignidade e a decência, fui escrever uma crônica. O mundo está muito desatinado e barulhento.

Renato Muniz B. Carvalho

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