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A lanterninha

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 28/12/2021 às 18:58Atualizado em 19/12/2022 às 00:33
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Eu tenho poucas certezas. Uma delas, talvez a mais forte, é que existem os dias e as noites. O resto é pura especulação, matéria para a linguística, a história e a filosofia. Foi devido a essa constatação que eu decidi nunca abrir mão de uma boa lanterna.

Minha primeira lanterna eu ganhei de presente do meu pai. Nós íamos passar as férias na fazenda do meu avô e lá não tinha energia elétrica, tudo dependia de lampiões e velas, as noites eram escuras e misteriosas. A lanterninha me proporcionou autonomia diante da escuridão e tornou-se item indispensável nos passeios e viagens. Que felicidade a minha! Se no início servia para olhar o jardim, o vão debaixo da escada e se o portão da entrada estava fechado, depois me permitiu investigar os seres noturnos: morcegos, insetos, vagalumes, aranhas, curiangos e corujas, mas vou parar por aqui, a lista é longa. Pouco a pouco, fui mais longe, para verificar se vacas e cavalos estavam mesmo dormindo, se a água do córrego no fundo do quintal continuava correndo e se as estrelas não tinham caído do céu. Ingenuidade? Que criança nunca se perguntou isso e muito mais?

A energia elétrica não demorou a chegar e a lanterna adquiriu outras serventias. Memoráveis pescarias só foram possíveis graças a ela. Preparada a tralha de pesca, nós – meus irmãos, amigos e eu – descíamos para o córrego e ali ficávamos até tarde da noite, incomodando os peixes nos poços calmos e profundos. Mais conversávamos do que pescávamos. As boas sensações vinham de poder estar ao relento, sob o céu das noites frescas do Cerrado, ouvindo o sussurro da água escorrendo entre as pedras, os pios e os chiados de animais desconhecidos para nós e outros sons não identificados.

As lâmpadas das lanternas eram frágeis, queimavam-se com facilidade, as pilhas eram grandes e caras. Por isso, economizávamos o uso. Não raro, na volta subíamos em fila indiana, com o primeiro iluminando o caminho para os demais. Na beira do barranco, a luz era acesa só em caso de fisgada certeira ou para trocar a minhoca no anzol. Ficávamos preocupados com cobras, mas não nos metíamos em locais com mato alto e troncos caídos. O pior que podia acontecer era a linha enroscar num galho, perder o anzol e quebrar-se a frágil varinha de bambu.

Com o tempo, as lanternas se transformaram. Nós e o mundo, também. Chegaram as importadas dos países asiáticos, as lâmpadas de LED, e sumiram as pilhas grandes, substituídas por baterias e pilhas recarregáveis. As pescarias acabaram. As conversas agora giram em torno da poluição dos rios, da falta de tempo, das doenças, dos atropelos da vida. Hoje, muitas pessoas não estão nem aí para lanternas, meio ambiente e ciência. Acho que não ligam de ficar no escuro.

Renato Muniz B. Carvalho

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