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Carro velho só pega no tranco

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 03/11/2021 às 18:30Atualizado em 19/12/2022 às 01:17
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O carro velho parou no meio da rua, morro acima, mão única. Parou de repente, sem aviso prévio, sem dar notícia nem revelar intenção. A primeira buzinada veio assustada, de alerta; a segunda veio anônima, nervosa, exigindo que saíssem da frente. O motorista do carro velho nem se tocou. Cabelos despenteados, magro, aparência de cansad “Não é a primeira vez e nem será a última”, disse, envergonhado. Pensou um pouquinho e olhou para a fila que se formava atrás. Era tarde demais pra avisar; se soubesse que o carro ia quebrar, teria acenado com a mão. Muitos carros nas ruas, véspera de feriado, sabia que teria problemas.

“Deve ser a maldita mangueira do radiador ou o cabo da bateria?”, resmungou. O carro era tão velho quanto o dono. Soltou o cinto de segurança e apertou o cinto que segurava a calça desbotada, sem se importar com as buzinas, agora incontáveis: a do jipão vermelho, a da camionetona cinza, a do carrinho um ponto zero. “Até esse mindinho aí!”. Coçou a cabeça, abriu a porta e desceu do carro, disposto a encarar o mundo.

Torceu para que conseguisse resolver logo o problema, que aparecesse alguém para ajudar, que caísse do céu uma sacola cheia de dinheiro… Não adiantava chorar nem reclamar o leite derramado. “Qual é o corret chorar ou reclamar? O leite…”

Abriu o capô, olhou, mexeu em tudo quanto foi cabo, verificou parafusos, arruelas, gambiarras, barbantes e mangueiras cheias de fita isolante. Conferiu o nível da água e do óleo. Sentiu-se solitário, perdido numa estradinha de terra, fim de linha, fim de carreira. Lembrou-se do filtro de combustível, que entupia direto e reto.

Vez ou outra, dos andares mais altos dos prédios, algum curioso olhava a cena. A cidade fervia e o asfalto cáustico exalava um cheiro de plástico queimado. Nem ligava para os caras que passavam e xingavam, que buzinavam bem no seu ouvido, de propósito, pois sabiam que não adiantava nada. “Ah, se pudesse fazer pegar no tranco.” No tranco era sua vida, a cada manhã um solavanco, empurrões, remendos, um pouquinho de combustível de cada vez, como a cerveja que bebia no boteco nos fins de tarde: “Uma só, seu Jorge, que hoje estou sem dinheiro!” Ia embora pra casa no tranco.

Passou a mão na testa, percebeu que sujou de graxa os cabelos brancos, limpou na camisa, que estava totalmente fora da calça, e entrou no carro. Sentou-se no banco caindo aos pedaços, respirou fundo e decidiu ligar a chave pra ver se pegava sem precisar empurrar. Antes de girar a chave, decidiu que, com chuva ou com sol, iria pescar no fim de semana. Não tinha o menor interesse em consertar o mundo. Na sua opinião, este mundo não tinha como melhorar.

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