ARTICULISTAS

O amor e outras descobertas

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 01/09/2021 às 19:22Atualizado em 19/12/2022 às 02:17
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O amor sempre foi uma coisa complicada. Pior ainda se você fosse adolescente nos anos 1960 no interior de Minas Gerais. Rodeados de cuidados e censuras, cercados por preconceitos e desinformação, meninos e meninas quase não podiam se olhar. Ah, os olhares! Nesse aspecto, cabia à minha tia solteira nos vigiar. Ela era encarregada de fiscalizar as condutas e os movimentos que fazíamos com as mãos, os pés e os olhares na presença do sexo oposto. Não sei que atributos e competências ela tinha para desempenhar a função a ela destinada, nós achávamos que era devido à sua solteirice.

É preciso pensar nos motivos que deram origem a tantas incompreensões e a atitudes condenáveis, difíceis de entender e de aceitar nos dias atuais. Alguns conhecidos nunca superaram essa fase repressiva. Para esclarecer aos incautos: a ideia de “sexo oposto” é um absurdo. Ainda que meus pais tivessem posturas progressistas, a sociedade local era, e em certos aspectos continua assim, bastante conservadora, principalmente quanto aos costumes.

Existiam brincadeiras de meninas e brincadeiras de meninos, com os respectivos brinquedos separados e rotulados. Futebol e carrinhos eram prerrogativas de meninos. Bonecas e “casinhas” eram indicadas para meninas. Os dois grupos mal podiam ficar juntos nas festinhas de aniversário. Meninas eram orientadas a não falar alto, a cruzar as pernas “direito” e a se comportar na presença de estranhos. Meninos eram estimulados a ofender o adversário, a não “levar desaforo pra casa” e outros procedimentos reprováveis. Tive alguns colegas marcados por cicatrizes, sem falar do que ficou reprimido dentro de cada um deles e nunca se soube se um dia saiu ou de que forma extrapolou. Nesses casos, a vigilância das tias solteiras pouco adiantou.

Sem que percebessem, meninos e meninas eram manipulados para defender valores caducos já naquele temp concepções arcaicas de família, violência, tradição, visões ultrapassadas sobre o mundo, papéis sexuais rígidos, conservadorismo e poder político autoritário. Pouco a pouco, os “guardiões da moral” inoculavam conceitos anacrônicos a partir de práticas inocentes, mas nem tanto. Somente no final do século XX é que comportamentos machistas, abusivos e discriminatórios começaram a ser discutidos e refutados. Até lá, quanta tristeza e sofrimento! Acho que minha tia não percebia nada disso; a distância no tempo e a relação de parentesco é que me faz condescendente com ela. Talvez ela não tivesse culpa, é provável que tenha sido ensinada a pensar dessa forma. No seu tempo de menina, a realidade devia ter sido muito pior. Sei lá!

Um dia, percebemos que amor, sexo e felicidade se misturavam e sobre eles não cabiam legislação ou preceitos opressores. Quem não entendeu as mudanças se tornou amargurado, fechou-se num mundo que estava mudando, como aconteceu com minha tia solteira, que só tinha olhos para os sobrinhos, mas estes cresceram e não couberam mais naquele círculo enferrujado do qual ela fazia parte.

Renato Muniz B. Carvalho

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