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O voo do gavião

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 12/07/2021 às 21:54Atualizado em 19/12/2022 às 03:00
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Nesses tempos frios, quando o que nos resta é olhar pela janela, é necessário ampliar o olhar. Em algum momento, será preciso ultrapassar o peitoril, pular o muro, voar mais alto, voltar às ruas. Nesse ínterim, não se acomodar e não perder a noção de movimento são indispensáveis. Aproveito para observar o voo do gavião planando no céu azul deste inverno seco que ficará guardado na memória como o segundo inverno da pandemia, da seca anunciada e da luta pela vacina. Desnecessário dizer que eu, nascido nos anos 1950, jamais imaginei que as pessoas demonstrassem euforia pelo simples fato de terem se vacinado. Aquilo que, no meu tempo de criança, era uma atitude banal se transformou num momento de comemoração e alívio, com direito a fotografia e publicação nas redes sociais. Como nossos descendentes vão analisar tudo isso? Deixarei por conta deles.

Se puder contribuir, vou falar do mundo atual visto pelos olhos do gavião. Seu voo é calmo, asas bem abertas, visão atenta aos pequenos detalhes, no nível do chão, nas entranhas onde se escondem pequenos roedores. Sim, há muitas fissuras e vísceras expostas, lugares escondidos, frestas e ranhuras, tais como os meandros que cercam o processo da doença e da cura. Não falo de epidemiologia, mas de política, de acordos espúrios e de negócios escusos. Sim, são muitos os negociantes da vida e da morte, da verdade e da mentira, da felicidade e da amargura.

O gavião, embora distante, está sempre atento ao sobrevoar seu território. É capaz de percorrer longos trechos, até onde minha vista alcança. Do alto, talvez ele enxergue os catadores de material reciclável que se movimentam silenciosos, remexendo lixos alheios à procura de garrafas, papelão e plástico. Reviram os sacos de resíduos descartados antes que a turma da limpeza urbana venha e despeje tudo num caminhão barulhento. Como vivemos uma pandemia, eles usam máscaras, mas não usam luvas, não usam chapéus ou outros equipamentos de proteção pessoal. Muitos calçam chinelos de dedo. Os sacos que carregam, onde juntam o produto do dia de trabalho, é maior do que eles.

Voando em círculos, o gavião brinca com o vento e observa piscinas azuis em quintais cimentados. Parte da sociedade atual parece pouco se interessar por árvores; a especulação imobiliária despreza espaços verdes, à exceção dos terrenos vagos, onde, aliás, o lixo se acumula. O gavião sabe que não pode pousar nas cercas eletrificadas, protegidas por fios de arame com farpas pontiagudas, em espirais que lembram prisões. Do alto, ele desafia cachorros e latidos inconvenientes. Com a ajuda dos seus olhos, gostaria de compreender as razões das desigualdades que nos afligem, de entender o descaso com as pessoas e com a vida. Tomara que não nos falte a energia necessária para nos livrarmos das doenças, das mentiras, da tristeza e da miséria.

Renato Muniz B. Carvalho

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