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Mentiras

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 18/04/2020 às 10:47Atualizado em 18/12/2022 às 05:43
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No início dos anos 1980, resolvi me tornar comerciante de gado. A atividade implicava comprar bezerros, dar um trato neles, esperar um tempo, dividir em lotes e revender na época certa. Aparentemente, muito simples. Não era!

Como eu não entendia quase nada do assunto, apesar de ser filho e neto de produtores rurais, tive de contar com a assessoria de um especialista. Quem me ajudou, por quase três anos, foi um italiano buona gente que imigrou para o Brasil e, anos depois, já aposentado, me acompanhava e orientava. Após quarenta anos na região, ele conhecia muita gente, teve oportunidade de visitar propriedades rurais e assimilar a cultura local de modo excepcional. Por que não comercializava o próprio gado? Porque não tinha terras e, segundo ele, enquanto exerceu suas atividades no país que o acolheu, não teve condições de ganhar dinheir “Quem trabalha não tem tempo de ficar rico” – dizia.

Percebi que o sucesso do italiano estava ligado à sua aguda percepção do jeito de ser dos pecuaristas locais. Fazia comentários curiosos, como, por exemplo, ao me advertir para que não me iludisse pelos vendedores: “O tempo de amarrar cachorro com linguiça acabou”. Na prática, sabia das artimanhas usadas para valorizar ou depreciar um animal. Às vezes, diante de um lote de bezerros, me chamava num canto, apontava um deles e cochichava: “Retiraram o chifre”. Esta operação, relativamente fácil, dava aparência de novo ao bezerro, mas ele não ganharia peso como os demais.

Saíamos muito cedo, ainda escuro, para visitar as fazendas. Comprávamos meia dúzia numa, dez ou vinte noutra e, ao final do dia, juntávamos cerca de oitenta a cem bezerros. Reunidos numa única propriedade, aguardariam um caminhão vir buscá-los. Almoçávamos nas fazendas, às vezes aproveitando a gentileza dos proprietários, às vezes pagando preços irrisórios por um delicioso frango com quiabo, sobremesa de frutas em calda, café torrado e moído na hora, além das quitandas: pão de queijo, broa de fubá, biscoitos… Se a fome apertasse, nunca faltava um pomar repleto de mexericas, laranjas e outras frutas.

Numa ocasião, percebi que, no decorrer de uma negociação, o italiano deixou escapar uma mentira. Quando ficamos a sós, eu o questionei. Sem se atrapalhar, ele disse: “Mentira comercial pode”. Três anos depois, ele adoeceu e não pôde mais me acompanhar. Ainda o visitava, até o dia em que faleceu. Ficou o aprendizado e o incômodo com a tal “mentira comercial”. Logo, a atividade “artesanal” de compra e venda entrou em decadência, substituída por leilões, muitos deles transmitidos pela TV. Para que levantar cedo, matar a fome com frutas nos pomares, sentir o sol na cacunda e aspirar poeira num curral distante?

Quanto às mentiras, elas ganharam outra dimensão, outros propósitos. As consequências advindas afetam multidões, alteram resultados eleitorais, estimulam o ódio, a ignorância. Com certeza, não vivemos mais num tempo em que se amarram cachorros com linguiça!

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