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O boteco da esquina

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 29/02/2020 às 13:07Atualizado em 18/12/2022 às 04:35
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O boteco é uma instituição das mais representativas da sociedade brasileira. A referência é o boteco “quase” espontâneo, aquele que surgiu sem que ninguém nunca tenha se perguntado como, quando e por que apareceu. Simplesmente, brotou num ponto estratégico da rua, do bairro, da cidade e por ali ficou, meio largado, inofensivo, mas carregado de significados e conveniências. A maioria é administrada por uma única pessoa, um faz-tudo que abre, fecha, limpa, serve os fregueses, cozinha, conversa, dá conselhos, faz intrigas, anota os fiados, perdoa dívidas e discute política, não necessariamente nesta ordem e prioridade.

A sensação, como ocorre com as demais instituições sociais, é que um boteco dura pra sempre. Não é verdade, embora uns passem de pai para filho. O que costuma acontecer é que os botecos e seus donos fazem parte de uma unidade: desaparecendo um, desaparece o outro. Sim, botecos são finitos, mesmo que alguns resistam e façam história.

O autêntico boteco tem aparência e conteúdo informal. Alguns são descuidados — é preferível evitar a palavra “sujos” —, aparentemente desorganizados, bagunçados, ainda que o dono ou dona fiquem o tempo todo com um pano nos ombros, limpando infinitas vezes as mesas, as cadeiras e o balcão, tudo com o mesmo pano. Seu segredo e seu charme é essa aparência desleixada. É isso que caracteriza e individualiza cada um deles, faz com que sejam únicos e indispensáveis na paisagem urbana.

A preferência por um ou por outro depende da localização, dos petiscos servidos, da qualidade da bebida, mas o fundamental é a opção política dos donos e dos frequentadores. Ainda que existam divergências, é essencial certa afinidade ideológica. Botecos costumam ser lugares democráticos. Discute-se de tudo numa mesa, no balcão, na porta etc. Quem conhece botecos sabe que culinária, carnaval, literatura, traições e até filosofia, tudo pode ser objeto de discussão. Sem esquecer o futebol, o maior clichê, o campeão das citações. O universo fica pequeno numa mesa de bar. Os frequentadores são entendidos em generalidades, especialistas em tudo.

Muitos namoros, casamentos e amizades surgiram ou acabaram em botecos — ou por causa dos botecos. Não vá a um boteco sem que o cônjuge saiba, mesmo que a intenção seja dar em cima de alguém que frequenta o lugar. Continuando no capítulo dos conselhos, evite ficar devendo, pois as dívidas crescem rápido. Ah, e não jogue sujeira na calçada ou na rua.

Será que os botecos vão sobreviver aos atuais tempos obtusos? A preocupação é com as intolerâncias, os arranca-rabos políticos, o azedume das convicções. O pior é ver tudo isso acompanhado da precarização ou a falta de argumentos. Preocupa ver botecos aparelhados por partidários desta ou daquela facção. Ruim é ver sabichões decretarem o início de tempos improváveis, destilarem ódios, elegerem inimigos e vítimas. Botecos não combinam com totalitarismos, não se prestam a ideários antidemocráticos.

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