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Ganhar no grito

Gritar está na moda. Gritar, falar alto, esgoelar, esbravejar, colocar o som no último volume

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 31/08/2019 às 10:01Atualizado em 17/12/2022 às 23:53
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Gritar está na moda. Gritar, falar alto, esgoelar, esbravejar, colocar o som no último volume, enfim, todas as formas de se fazer ouvir ou de impedir que o outro fale. Gritar para se defender e gritar para agredir; vale tudo! Quem grita mais alto? Talvez seja hora de se criar uma nova modalidade de competição olímpica: o grito. 

Há variações. Por exemplo, os gritos ouvidos nas madrugadas. Podem ser gritos despreocupados, indecentes e incômodos, como o som alto e os exageros que se espalham nas festinhas nos quintais, nas varandas e mesmo nas ruas. Funciona assim: um grupo se reúne para beber, para fazer um churrasquinho, para conversar, para comemorar qualquer coisa — ou para nada — e se esquece da hora, dos vizinhos e da civilidade. Extrapolam, bebem além da conta e o som sobe, vai longe, ultrapassa muros e o bom senso. Sem perceber, ou percebendo, os deslumbrados soltam risadas, brigam como se não existisse mais ninguém no mundo, como se idosos, crianças e trabalhadores não importassem. “Danem-se os outros!”, “eu quero curtir meu som, minha cerveja”. Afinal, pode ser o derradeiro dia do universo.

Existem os gritos de pavor e de medo. O grito de uma mulher que pede socorro, agredida por um marido raivoso e violento. O grito de quem foi assaltado, o grito de quem se sente sozinho, desesperado ou deprimido. O grito de uma criança que reclama de dor, de fome, de medo e de solidão. De uma criança abandonada, sem escola, sem brinquedos, sem acolhimento, sem futuro.

Existe o grito dos estádios, das partidas de futebol, das competições esportivas. Gritos de vitória e de derrota. Os gritos de exaltação ou de condenação. Existem os gritos legítimos de quem se sente traído, roubado em seus direitos, de quem luta por melhores salários, melhores condições de vida, mais saúde, emprego e educação. O grito dos excluídos, dos despossuídos, dos espoliados, dos alienados.

Gritam os alucinados que não sabem as razões de tantos gritos. Gritam os loucos e os apaixonados, pois acham bonitos os diferentes matizes, as várias tonalidades e nuances da voz. Gritam as crianças que brincam de pique, que jogam bola na rua, que empinam pipas, que andam livres de bicicleta nas ruas acolhedoras de uma cidade inexistente. Faz tempo… 

Gritam de raiva os que não entendem o mundo em que vivem, os que não aceitam a diversidade humana, os que querem para si todos os privilégios. Gritam de ódio os que querem coibir a fala dos índios, dos negros, dos pobres. Gritam cheios de antipatia e de aversão os que desejam a volta da censura e do arbítrio, a violência do Estado, a punição para os opositores. Gritam os que não querem ouvir o amanhã chegar, os que já não dão conta de ouvir a semente germinar. Quem vai gritar mais alto? Ou virá um silêncio ensurdecedor?

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