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O sítio amado

Trabalhou bastante até atingir um confortável equilíbrio econômico e financeiro

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 20/03/2020 às 19:14Atualizado em 18/12/2022 às 05:07
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Trabalhou bastante até atingir um confortável equilíbrio econômico e financeiro. Podia já se dar ao privilégio de viver de rendas, embora não fosse efetivamente um milionário. Há muito andava incomodado com a desordem de seu país, que passava por lamentável fase. Sempre jurava que quando pudesse mudaria para outra nação, onde as coisas funcionassem bem. Então, entendeu que ter chegado a hora. Fez muitas viagens com sua mulher, intimamente procurando qual seria o seu paraíso de paz, considerando semelhanças de linguagem e hábitos. Enfim, definiu seu destino. Caprichosamente, adquiriu um solar com quintal e jardim, em lugar reconhecidamente seguro e pacato, perto da capital, com acesso fácil ao aeroporto internacional e a todos os recursos mais eficazes e modernos. Mudou-se apenas com a esposa, a quem custou convencer da ideia. Ela fazia questão da proximidade da família que não foi. Filhos e parentes tinham compromissos na terra natal. Ocorria ser necessário voltar à sua origem, afinal, tinha tempo disponível e não havia como financiar tanta visita. Além disso, parentes e amigos tinham impedimentos por obrigações de ordem pessoal, trabalho, escola... Portanto, logo que mudou-se cuidou de promover convivência social. Frequentava clubes, teatros, igreja... Contudo, quase sempre, fora isso, estava mesmo só, com seu par. Entendeu que não seria fácil ser efetivamente aceito por ali. Simplesmente não era incluído, por mera indiferença ou por desconfiança, pela desigualdade de hábitos e modos ou até por algum preconceito. Depois de seis meses pouco se alterou. Tentava promover encontros à moda de seu país, mas os convidados simplesmente não iam. Se cobrados, usavam das mais singelas evasivas. Enfim, ficava mais só ao lado da esposa. Se tomava algum drinque, era sem ter com quem mais se divertir, rir, brincar, ou brindar, além de sua mulher, bem contrariada com a situação. O sorriso solto sumiu. Não havia de fato como curtir seu êxito pessoal. Depois de ano, com certo esforço, por provocação da esposa, admitiu que equivocou-se. Seu mundo ficou... Amigos, parentes, comemorações, danças, músicas, convites, consideração, muita coisa não pôde levar consigo. Talvez o essencial, a invisível convivência afetiva, imaterial. Sentiu saudades emocionadas de seu habitat natural. Entendeu que não podia dar valor apenas aos problemas. Recuou. Retornou para sua Pátria, mesmo diante da desordem geral que, no entanto, não chegava ao caos, reconheceu. Voltou disposto a engrossar fileiras e forças para construir e transformar seu país num lugar melhor. Custou caro, mas conseguiu adquirir de volta sua casa e, enfim, regressou a seu torrão de origem, suas raízes. Entendeu que, àquela altura da vida, dali nunca deveria ter saído. Ali era onde amava e era amado, onde plantou a confiança, onde constituiu um grande patrimônio também em respeito, convivência e amizade. Ali era seu sítio amado.

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