ARTICULISTAS

Dramas, belezas e mistérios da noite

Vânia Maria Resende
Publicado em 05/05/2022 às 22:53Atualizado em 18/12/2022 às 22:54
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O espetáculo de noites estreladas e de lua cheia funde beleza e mistério. Sob um cenário de brilho infinito, há lugar também para imagens íntimas infernais e para dramas públicos. Em sonhos de angústia o medo é paralisante. Na ânsia de se libertar, o corpo treme, chora, quer correr e os pés não saem do lugar; quer gritar e o som fica preso na garganta – sinais de que algo abafado quer ser ouvido. À luz do dia, o pesadelo terrível não é mais levado a sério; o sonho nem é lembrado ou a trama onírica perde a dramaticidade, reduzida ao humor, ao aparente sem sentido do absurdo.

Mistérios e aventuras podem ser fascinantes ou assombrosos à noite. A escuridão abriga sons e visões horripilantes. O vento uiva e corta o silêncio, dando frio na barriga; um galho balança projetando monstros na parede. Tem figuras humanas excêntricas e patéticas que transitam na vida noturna: travestis e mulheres nas esquinas oferecem seus corpos. Loucos, sem sono, vivem suas fantasias como realidade. Como uma jovem negra com flores na mão que vi indo, na madrugada, da rodoviária de Uberaba ao bairro Mercês num ritual inusitado e, por que não dizer, poético? Ela subiu o morro de uma rua longa até que a perdi de vista. Cena como essa não se apresenta com o mesmo impacto sob a claridade solar.

Até os anos 70, era comum, em cidade pequena, rapazes voltarem a pé de bailes, bares, farras juvenis; caminhavam assobiando, em altas horas, sozinhos ou em turma. Também, há quem tenha na memória a lembrança de ter viajado de carona na carroceria do caminhão de leiteiro; desse lugar privilegiado vislumbrava-se o escuro desaparecendo e a passagem para o quase claro com os primeiros raios do sol. O caminhão recolhia o leite de galões grandes, na zona rural, para levá-lo para o laticínio.

Na calada da noite, um apito de trem evoca tempo longínquo, estações antigas, vielas desaparecidas. Um ronco de avião que passa distante deixa as perguntas de onde veio e para onde leva os passageiros e tripulantes das alturas. Um voo de ave que corta os ares repentinamente traz a imagem do corvo do poema “The Raven”, de Allan Poe. À meia-noite, a ave misteriosa entra pela janela daquele que perdeu a amada e mexe com a dor da ausência, repetindo never more (nunca mais), palavra na qual raven ecoa.

À noite, às vezes o desespero se torna insuportável e se expõe publicamente em performance dramática, como vi. Eram 20 horas e uma moça de menos de 30 anos estava assentada na sarjeta, cercada por pessoas que tentavam acalmá-la. Acabara de se jogar na frente de um carro e escapara, mas não desistira da ideia de se matar. Pelo que ouvi ali, a causa era uma desavença com a irmã. Entre os presentes, uma senhora quis agradá-la com o batom que levava na sacola para presentear alguém. Fora de si, com potência vital amortecida, a moça não respondeu, não foi tocada na vaidade feminina, pois sua urgência era se livrar da dor de viver.

Vi outro drama se desenrolar, das 4 às 6 horas. Um rapaz de mais ou menos 40 anos parou bruscamente a moto no meio da rua e ficou aí gritando “socorro, Ju!”, por uns 15 minutos. Estava diante da casa do Ju, seu tio, que, por não ouvir bem, não acordou e não apareceu. Alguém chamou a polícia e logo, logo surgiram duas viaturas. Outra pessoa ligou para a ex-esposa do Ju, do que resultou a chegada da irmã do rapaz e, em seguida, o Samu. O medo de ser levado para internação trouxe mais desespero ao moço, ainda com muito efeito de droga. A irmã, angustiada, apelava para que ele entendesse que estava acabando com a própria vida e corria risco de morrer com overdose, e dizia que não era a culpada da situação em que ele se encontrava, e sim a esposa da qual ele estava se separando.

O poema pungente “Orfandade”, de Adélia Prado, coloca ao leitor um sentido doloroso de ser adulto, de ter que dar conta de assumir tudo o que viver implica: “Meu Deus,/ me dá cinco anos. [...]/ me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe./ Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,/ me dá a mão, me cura de ser grande” (fragmento do poema, obra Bagagem).

Talvez, baste um só clarão, a primeira luz no amanhecer. É bonito ver barras coloridas surgindo no horizonte, prenunciando o despontar do sol. Um sino raro e uma casa solitária no campo ainda persistem. Badaladas se perdem no ar. A fumaça do fogão sai da chaminé, sobe devagar, se esvai; a vida se espreguiça. A cidade acorda, se agita, renova dramas e belezas. De manhãzinha, a delícia do pão com café quentinho, coado na hora...

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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