ARTICULISTAS

Paulo Freire e a não neutralidade da Educação

Vânia Maria Resende
Publicado em 20/12/2021 às 16:45Atualizado em 19/12/2022 às 00:44
Compartilhar

Assumir posição contra ou a favor da concepção pedagógica de Paulo Freire (1921-1997) demanda leitura da sua obra. Esse é o meio de se conhecer o ideário do pensador (reconhecido internacionalmente, e declarado “patrono da educação brasileira” pela Lei nº 12.612 de 2012), cujo centenário é comemorado em 2021, a partir de 19 de setembro, data do seu nascimento. O que ele legou de postulado e testemunho é coerente com a educação como determinante de desenvolvimento humano e social digno, só viável sem opressão e alienação das consciências. Da falta de leitura do autor ou do contato superficial com recorte de citação de texto, decorrem distorções e ataques levianos a ele. Há alguns anos, ouvi um professor de Uberaba (isso mesmo, um professor) dizer, de maneira banal, sem respeito e cerimônia, em um programa de TV local, que Paulo Freire era um enganador. Não só no Brasil dos dias atuais, portanto, ele é demonizado por intolerantes com a essência libertária da sua pedagogia. Os que o criticam sem conhecer a sua obra pecam por desonestidade intelectual.

A educação emancipadora, que se constrói com pessoas e seus sonhos, sentimentos, ideias, reflexões, envolvidos na relação com objetos (conteúdos e a realidade concreta), é insuportável para mentes que tutelam conservadorismos e retrocessos – pilares de uma escola estagnada, triste, obscurantista – e almejam uma neutralidade inadmissível para o espaço escolar. Como disse Paulo Freire, a educação não é neutra. Não se exime de um lado ou posição; nos objetivos e rumos pedagógicos da escola estão seu modo de pensar (sua tendência ideológica identificada a concepções específicas), enfim, sua identidade política (não com sentido partidário).

A vertente de escola reprodutora de informação se detém na transmissão-recepção de aspectos técnicos do conteúdo. Supõe-se que opere com educador e educando passivos, alienados do seu tempo e do contexto real. É improvável, sob essa vertente, a formação da mentalidade combativa, que se inquiete com os fatores socioculturais, econômicos, políticos, enfim, históricos, de desequilíbrios sociais e ecológicos, e se empenhe em saídas para o bem-estar coletivo. A educação silenciada pela falta de consciência reflexiva não dialoga, nem contesta, não cria vida em movimento solidário. O confinamento na objetividade acrítica pode condicionar juízo absoluto, produtor e adesista de preconceitos, fundamentalismos, trama de enunciação falsa: de mentira como verdade.

A educação à qual Paulo Freire se dedicou é campo dinâmico que incrementa o conhecimento sem excluir afetos e belezas, alegria e criatividade; é inconciliável com omissão, elabora decisões, gera mudanças, abarca a diversidade. Já o campo tecnicista homogeneizador não fomenta elaborações analíticas e questionamento filosófico. Vimos aqui dois modelos divergentes: o burocrático, focado no objeto, e o dialógico, onde o sujeito interage criativa e criticamente com o conteúdo. Além desses modelos ou filiados a eles, outros modelos podem existir, mas nenhum de escola destituída de identidade.

A tentativa de demolir a pedagogia crítica, com aprovação de leis e projetos, não tem êxito no sentido de garantir despolitização ou neutralidade pretendida. Além do mais, o processo educacional é amplo e complexo, admite frestas de escape, amplia perspectivas não submissas a controle com restrições objetivas do domínio externo (escolar e familiar). A afirmação de Paulo Freire de que “a raiz mais profunda da politicidade da educação se acha na educabilidade mesma do ser humano, que se funda na sua natureza inacabada [...]” (Pedagogia da autonomia, 2007, 36ª ed., p. 110) leva a pensar que a aprendizagem não começa e termina dentro dos limites da escola e do lar; inclui descobertas em incursões pessoais, independentes. As vias são muitas, entre elas a internet, onde boa parte das crianças brasileiras acessa informações ilimitadas, muitas vezes longe de monitoramento adulto.

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por