ARTICULISTAS

A identidade das bibliotecas

Vânia Maria Resende
Publicado em 22/08/2020 às 11:53Atualizado em 18/12/2022 às 08:57
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A biblioteca como construção material tem o seu lugar; seja a particular, escolar, pública, comunitária. Fisicamente, integra o ambiente doméstico, educacional e vários espaços sociais (inclusive abertos, como parques); é suporte importante de produção intelectual, informação, enriquecimento cultural, lazer no lar, no trabalho, na escola e em centros de cultura. A célebre Biblioteca de Alexandria (Egito) é famosa por ter sido uma das maiores sedes de conhecimento instalado no século III a.C e pelo objetivo audacioso que moveu a sua criação, o de agregar obras de todos os povos. Por isso, é símbolo da grandeza da casa que reúne e guarda livros. Na obra “Biblioteca à noite”, Alberto Manguel mostra um tipo curioso de biblioteca móvel, um biblioburro, no interior da Colômbia. Todo transporte itinerante é válido para levar o livro ao leitor: bicicleta, mala, cesta, baú, barco – morada provisória de pequeno acervo; ou van, ônibus – morada fixa de acervo maior.

Sobre a cogitação de desaparecimento do livro impresso e da biblioteca física, acredito que, se depender dos que têm formação humanística, não se consumará, o que não quer dizer que reprovem a coexistência desses bens, que são marco civilizatório indestrutível, e novas conquistas, como a biblioteca digital e e.books. Expressão de afeto é mais intensa presencialmente do que por meio de imagem transmitida na tela de celular, computador, TV. Tanto o mergulho na história documentada em um museu, como a fruição da ambiência arquitetônica de antigas catedrais são mais profundos quando se entra neles do que vistos à distância; por projeções visuais, a sensorialidade não alcança nuanças da consistência da materialidade. Também, a apreciação do efeito estético de cor, textura, luminosidade, forma... na pintura, arquitetura, escultura e outros objetos de arte é mais sutil face a face do que por meio da imagem digital ou no papel. Com livro impresso e biblioteca física não é diferente: o contato corporal é o início de interações mais significativas.

A Biblioteca Pública Municipal Bernardo Guimarães, parte importante da história de Uberaba, fez 111 anos em 2020. É exemplo de que uma biblioteca física de perfil digno, ativa e bem estruturada, com equipamentos, acervo e recursos humanos de qualidade, compõe o patrimônio cultural de uma cidade; demovê-la daí seria desagregar a identidade local. Bibliotecas são guardiãs da memória e sua edificação ao lado de igrejas, escolas, teatros, cinemas... corporifica a evolução da humanidade. Existem lindas bibliotecas no mundo, cujo projeto arquitetônico carrega a História, como a bela Biblioteca Nacional, sediada no Rio de Janeiro. Preciosa também é a biblioteca particular de livros raros do bibliófilo brasileiro José Mindlin, constituída durante mais de 80 anos. Foi doada à USP-SP e recebeu o nome de Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin; com cerca de 30 mil títulos e 60 mil volumes, localiza-se na cidade universitária, em espaço projetado à altura do seu valor e peculiaridade.

No período da pandemia, vendo lives, entrevistas, transmissão de notícias diretamente de escritório, consultório, residência, observei os livros na retaguarda, integrados ao espaço pessoal, como suporte e fonte de consulta, pesquisa, conhecimento. Bibliotecas propriamente vi poucas; predominantes são livros em estantes, às vezes ocupando também peças próximas. Objetos junto aos livros dão dica da identidade do proprietári miniatura, bonequinho de coleção, troféu de premiação, quadro de pintura, planta, amuleto; e porta-retrato, que é do mesmo campo de afeto e memória do livro. Acervo, estante, objetos definem um ambiente ou outr simples, sofisticado, requintado, lúdico, sóbrio, leve, escuro, claro. Livros certinhos, em arranjo rígido, parecem indicar que não saem dali facilmente; os inclinados e espaços entre eles são pista de que algum foi retirado para leitura. Constatação importante mesmo é que biblioteca particular revela condição de aquisição socioeconômica e nível de escolaridade superior. Ter livro em casa deveria decorrer de necessidade cultural, possibilidade e hábito de compra, por parte não só de uma minoria privilegiada. Para parcela grande de brasileiros que vive em espaço apertado onde falta até feijão com arroz, é inviável possuir esse bem que custa dinheiro.

Vânia Maria Resende é Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa

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