ARTICULISTAS

Cegueira e vidência

Vânia Maria Resende
Publicado em 18/08/2020 às 19:20Atualizado em 18/12/2022 às 08:49
Compartilhar

O conhecimento questionador e a sabedoria extirpam o medo e o encolhimento produzidos por falsos anúncios tenebrosos. Não é contraditório que um materialista ou ateu clarividente tenha canais de espiritualidade (não restrita a religião). Acreditar no limite da vida terrena não o impede de vivê-la animado por virtude, fé, sentimentos positivos, ideal, e transcender (que não é se alienar, mas se elevar acima do superficial). Esses balizadores de energia espiritual são clarões internos da inteligência e da emoção em movimento de expansão libertadora. As elaborações profundas passam do abstrato a ação qualificada, equânime, motriz do bem-estar pessoal e social. O indivíduo ou uma comunidade prisioneira de ameaça apocalíptica – submersos na penumbra de pecado e censura genéricos, pavor do castigo, obediência e penitência cegas – dissociam-se do sagrado. Situam-se no estágio de entendimento literal (ao pé da letra) do pensamento concreto, por isso sua noção de salvação é descontextualizada da vida em mutação e do centro do eu. Reflexão e conhecimento crítico de si e do outro jogam luz sobre sombras reais (defeito, erro, culpa, julgamento), emancipam e transformam.     

A pandemia de 2020 e catástrofes de outros momentos são terreno propício a propagação de mensagens obscuras que anunciam o fim dos tempos e assombram com o temor de condenação e punição com fogo eterno, por uma dívida fantasmática coletiva. Outro dia, uma pessoa graduada, de mais de 70 anos, me disse que tem em casa estoque de água e vela, para passar os 3 dias e 3 noites de trevas que estão por vir, segundo a profecia de Santo Padre Pio que circula em rede social e internet, e é utilizada até em pregação apelativa, supostamente evangelizadora. Consta do seu conteúdo punitivo inquisitorial e pueril a oração de joelhos, como penitência, nos dias de falta e escuridão. Há mais de 2000 anos, Cristo deu testemunho de verdade e vida em abundância; insurgiu contra o poder opressor e farisaico imposto com lei e ritual vazios; revelou a face terna, amorosa, compassiva do Pai, não mais distante e vingativo; iluminou o entendimento de que o humano pode ser habitado pelo divino e, assim, o Reino se cumprir dentro de cada um e entre os homens. Contudo, ainda há quem pregue e quem acredite em narrativas sombrias, maniqueístas que acorrentam e oprimem a mente e o espírito. 

No seu estudo sobre a literatura fantástica, a escritora francesa Jacqueline Held considera que, quando falta ao imaginário infantil alimento mágico de qualidade, o adulto se satisfará com fantasia precária. A função primordial da literatura, tanto a infantil, quanto a adulta, não é edificante, mas lúdica, prazerosa, polêmica, irreverente; por isso, libertadora. Pensemos no romance “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, cuja temática apocalíptica versa sobre a epidemia da cegueira repentina que atinge toda uma população e a envolve em caos e pavor. As pessoas sobrevivem sob condições deprimentes, niveladas por relações inescrupulosas, em que “salva-se quem puder”. Apenas uma mulher de condição diferenciada – sensível, lúcida e ética – não perde a vidência; ver, no seu caso, tem sentido real e simbólico, já que ela é luz e guia na passagem para uma nova percepção. 

Nessa obra, o fator escatológico demole, detona conflitos, contém crítica à deterioração de estruturas sociais em convulsão. O cenário surreal da epidemia enseja tomada de consciência profunda da realidade e possibilidade de reconstrução social com o retorno da visão. Associando-se inferno, purgatório e céu a condições e modos de vida terrenos, bem e mal estão em condutas e sistemas de empenho construtivo ou destrutivo; são passíveis de reformulação e reorientação, dependendo da resolução humana, não de força mágica e solução simplista, como da fórmula premiar o bom e castigar o mau. 

É normal que algo novo venha no lugar do que se torna insustentável. Tomara que a derrocada da Covid-19 e de outros dramas cotidianos leve à inflexão para o desatar de nós paralisantes da morte, que é amplamente tudo que viola a vitalidade, tripudia sobre ela. A pandemia criou o cenário funesto de insegurança, instabilidade, isolamento, perda, sofrimento inesperados. O que serviu de contrapeso – senso da realidade; arte, afeto; empatia, união coletiva, fé; ciência, informação confiável, tempo de interiorização, reflexão, ócio criativo, memória – é referencial de conversão saneadora.  

Vânia Maria Resende

Educadora, doutora em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa  

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Logotipo JM Magazine
Logotipo JM Online
Logotipo JM Online
Logotipo JM Rádio
Logotipo Editoria & Gráfica Vitória
JM Online© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por