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Afago a um galo morto-vivo

Vi pela TV uma entrevista, feita em Uberaba, cujo foco eram maus-tratos sofridos por um galo

Vânia Maria Resende
Publicado em 07/12/2019 às 14:20Atualizado em 18/12/2022 às 02:38
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Vi pela TV uma entrevista, feita em Uberaba, cujo foco eram maus-tratos sofridos por um galo que o veterinário tinha nas mãos. A imagem dos dois e a denúncia me provocaram uma mistura de emoções. Comoção pelo ato humano, do médico, de respeito à vida do animal. Indignação pela covardia de quem faz uso sádico de galos, explorados e aniquilados como mercadoria, descartada quando não presta mais. Tive também alento vendo um professor universitário, profissional que atua no Hospital Veterinário, amparar um galo e, nesse ato, defender todos os galos vítimas de maus-tratos em rinhas. 

Cláudio Yudi é nome do veterinário. Ele segurava o galo como se segura um bebê carente de colo, com cuidados maternais. Suas mãos tocavam com cuidado o corpo machucado. O seu toque era carícia, dando alívio e segurança a um galo depenado em grande parte do corpo, com dores e prognóstico de cegueira. Nessas condições, imprestável para brigas, o animal sem serventia não teria as feridas curadas; se tivesse recuperação, seria tratado para enfrentar outras disputas violentas, com fins lucrativos.

Conheci Yudi em consultório no Hospital, em Uberaba, onde ele atendeu um passarinho doente que levei para consulta. Sua competência científica tem algo a mais, e fundamental, que é a visão espiritualizada do profissional. Na ocasião, ele pesou o passarinho numa balança do tamanho do pires de xícara de chá, colheu um mínimo de fezes que o bichinho expeliu ali; analisou, medicou, e logo veio a cura. Antes disso, o conheci como palestrante: ágil na expressão, sensível na abordagem, conhecedor do comportamento animal, das peculiaridades dos seres sencientes que se alegram, entristecem, se curam quando bem tratados e até podem morrer quando perdem a relação com o cuidador. A observação e estudos sobre a convivência entre animais e seres humanos o abalizam a afirmar os benefícios emocionais para as duas partes. Da simbiose entre ser humano e animal decorrem até doenças do tutor absorvidas pelo bicho de estimação, como depressão, gastrite etc.

É louvável o trabalho de Cláudio Yudi na defesa dos direitos dos animais. Na entrevista, a imagem do animal sofrido expôs a atitude antiética e violenta de certos grupos e pessoas que, por diversão ou ambição, escravizam animais. Como entender práticas como rinha, tourada, rodeio, farra do boi, vaquejada..., a não ser como expressão de crueldade grotesca, liberação de instintos arcaicos? A energia gasta nesses eventos poderia ter elaboração civilizada saudável, criativa, transformada em algo bom e belo. Quem depena o corpo de um galo para atiçá-lo para a disputa não está em harmonia; por nada saber de si mesmo dentro do projeto maior do Universo, é vítima da dissociação que justifica descaso pela terra, pelo ar, pela água, pelas plantas, pelos animais, pela vida, inclusive a sua própria.

Um galo é belo na sua altivez e no seu canto que acorda o dia, anunciando vida. Uns negam a beleza e banalizam a vida; outros as reverenciam em compaixão, respeito, ternura. Ao percorrer com o dedo o corpo do galo, Cláudio Yudi fez mais do que mostrar esse corpo destruído; fez ver a grandeza e a fragilidade do mundo inteiro contidas nele. Não se apaga da minha retina o afago do veterinário naquele galo cabisbaixo, exausto, agredido, com a cabeça toda machucada. Afago tão contrastante com a vileza dos predadores! De olhos fechados, o animal meio morto, quase cego, ou já cego talvez, foi digno de um descanso e um lenitivo, dados pelo veterinário que lutou por ele e o acolheu com a energia amorosa que fluía das suas mãos. 

(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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