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Modernização e cultura tecnológica

Sistemas econômicos indutores do consumo pelas mídias, inclusive digitais, e outros meios de comunicação

Vânia Maria Resende
Publicado em 02/09/2019 às 20:27Atualizado em 17/12/2022 às 23:55
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Sistemas econômicos indutores do consumo pelas mídias, inclusive digitais, e outros meios de comunicação de massa utilizam táticas sedutoras, infalíveis na venda do produto. Aliciam as mentes não emancipadas, embutem-lhes gostos, desejos, necessidades; vendem também imagem de pessoas, não importa se à custa de notícias falsas, de montagem da aparência etc. Eles incitam a competitividade contra a solidariedade; rebaixam o nível da exigência da satisfação do prazer estético; movimentam a cultura de banalização do entretenimento, contrária à criatividade genuína que se dirige profundamente à subjetividade. Fenômeno curioso na cultura fomentada pelas novas tecnologias é o bastar-se com ilusões, com a imagem que fascina mais do que a realidade. Comprova-se o poder desse fascínio em festas, restaurantes onde tantos têm olhos fixos no celular, incomunicáveis entre si, enquanto não se desligam das redes sociais. Também, durante palestras ou outro tipo de apresentação pública, muitos preferem captar a visão reduzida do que se desenrola de real, enquadrando-o na tela eletrônica. 

Quem destoa do senso comum e, avesso ao agir mecânico, nega-se à perda do status humano, não deixa de seguir suas determinações internas, adequadas e variáveis a cada situação; é coerente com a autonomia do seu próprio juízo. O autoconhecimento é antídoto à despersonalização e ao automatismo da consciência, propicia à mente interrogações, inquietação, emancipação; possibilita preferência pelo inusitado a distrações apelativas, desqualificadas, repletas de clichês, condicionantes de dependência.

O círculo vicioso da “fofoca” (termo de um sociólogo, em um programa “Café Filosófico” na TV Cultura) se propaga nas redes sociais com velocidade incrível. As postagens são insaciáveis, em ritmo alucinante: casamento, nascimento, batizado, primeiro som do bebê e suas gracinhas de cada minuto, aniversário, formatura; almoço em família, ida a restaurante, receita culinária; viagens; cosméticos; carro último tipo; gente se mostrando com roupa, sem roupa; happy-hour... A novidade instantânea, em lugar do novo. O novo deixa marca inconfundível, renova, dura; o exibido e deletado é descartável numa teia obsessiva, compulsiva. A cultura virtual substitui o sólido pelo light que não ocupa lugar e, o durável pelo breve e deletável. A memória humana, entretanto, não apaga dos registros interiores a matéria de vida inesquecível.

O autor americano Marshall Berman analisa o turbilhão que define a cultura na qual estamos inseridos: “No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se ‘modernização’” (livro Tudo que é sólido desmancha no ar, Editora Companhia de Bolso, p. 25). No fluxo vertiginoso de superação instantânea da realidade, tudo envelhece no momento mesmo em que acaba de nascer. Ser moderno, segundo Berman, “é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição”; e ser um modernista “é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu o ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado” (obra citada, p. 407).

Mudanças de cada época têm uma medida de modernização. As dos séculos XX-XXI redimensionaram as identidades individuais e social de maneira extraordinária. O que foi vivido, que ficou para trás, é lembrado com tom de história fabulosa. Como se fosse uma vez, lá em um tempo pacato, o viver devagar e o caminhar com os próprios pés, em passos lentos; um lugar do fazer artesanal, de contentar-se com pouco, para o necessári roupa, alimento, mobiliário, diversão, cultura, informação... Fomos arrebatados pela revolução industrial e eletrônica acelerada, nervosa. A transição do limite ao imensurável lançou-nos a espantoso fluxo espaciotemporal. Perplexos, sem ilusão de ordem causal de tempo, nossa percepção do efêmero dissipa projeções do futuro e o real vivido que, num átimo, já são passado, simulacro. 

(*) Educadora, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

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