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Gentificar

Nos tempos hipermodernos, numa referência direta ao filósofo francês Gilles Lipovetsky...

Savio Gonçalves dos Santos
Publicado em 16/01/2016 às 19:49Atualizado em 16/12/2022 às 20:28
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Nos tempos hipermodernos, numa referência direta ao filósofo francês Gilles Lipovetsky (1944), o que se percebe é uma exacerbação de valores apoiada na égide da liberdade e da igualdade. Assistimos a uma guinada social onde os freios institucionais que, na maioria das vezes, solapavam a emancipação do indivíduo desapareceram, passando à ordem da subjetividade, autorrealização e egoísmo. Na prática, tudo o que estiver fora desse contexto (grandes ideologias, projetos sociais, conjuntura histórica, âmbito coletivo) não faz sentido, não interessa. Chega-se à “Era do Vazio” – uma das obras de Lipovetsky.

Tal situação acarreta numa proposta nova, num comportamento específico. A prática ética agora se converte na necessidade da imposição de uma “moral indolor”, fundada na possibilidade de escolha, no mundo da opção, que funciona muito mais pela emoção do que pela sanção, ou mesmo obrigação. Vale ressaltar que esses efeitos não apontam para a total inexistência de valores; não há um processo de anomia. O ponto chave da mudança é compreender que tanto a moral quanto a ética passaram para a seara individualista. Como consequência dessa subjetivação, o que vemos eclodir, diuturnamente, são excessos de individualismo irresponsável, tais com cinismo, recusa do esforço, não ao sacrifício individual, permanência numa zona de conforto, compulsão, toxicomania, violência gratuita, hedonismo desenfreado, terrorismo, psicopatias, corrupção.

O fato curioso diante de toda essa mudança pessoal e social é o retorno à ética. Um retorno que não tem ligação com a proposta de seu “pai”, Aristóteles. A ética hipermoderna – ou hiperética – aponta para um modelo de conduta que se baseia em colocações predeterminadas, códigos torpes, fundamentalismo moral subjetivo. Isso tem feito com que a sociedade acabe dividida em grupos que se opõem: os conservadores (ditos moralistas pelos progressistas) e os progressistas (ditos relativistas pelos conservadores). A sociedade, dessa forma, acaba sendo o espaço para a construção e demonstração da força de cada área, onde os soldados apresentam suas armas, estratégias, planos e soluções.

Em verdade, a ética, em sua proposta original, não se compunha de apresentar fatores subjetivos impondo comportamentos. O princípio motor na visão aristotélica era simplesmente – apesar de não tão simples – encontrar o equilíbrio, a moderação, a prudência. Assim, a prática ética supõe consciência. Ela depende de um esforço pessoal para controlar os vícios, os desejos e as paixões, adequando-os à vida social. É uma prática de autoconsciência (relação eu comigo), interconsciência (relação eu com o outro) e holosconsciência (relação eu com a sociedade). É a busca permanente da virtude, do diálogo.

Em suma, a ética precisa ser trabalhada subjetivamente e objetivamente; não há um código perfeito que se constroi e se impõe. Não adianta atribuir se não há consciência – apesar de ser mais fácil. Não há consciência se não há diálogo. Dessa forma, a solução possível é buscar Gentificar. Educar o humano, pelo diálogo, através do conhecimento, buscando a consciência, a ética. Gentificar supõe cinco estágios: Hospitalidade (aprender a acolher), Convivência (aprender a se relacionar), Tolerância (aprender a compreender e a tolerar), Comensalidade (aprender a dividir e a partilhar) e Gentileza (aprender a ser gente). Assim, a ética torna-se possível e a moral será a base de apoio; construídas por gente para a gente.

(*) Professor de Filosofia

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