ARTICULISTAS

Aristocracia da Música

Olga Maria Frange de Oliveira
Publicado em 29/11/2020 às 20:10Atualizado em 18/12/2022 às 11:04
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O violão é um instrumento de origem moura e vem da família das cordas pinçadas. Por ser entendido como uma viola grande, o nome violão é utilizado apenas no Brasil. Em outras partes do mundo é chamado de “guitarra” clássica ou acústica.

Os jesuítas, por volta do século XVII, introduziram a viola de arame, de origem portuguesa, hoje conhecida como viola caipira ou, há até quem prefira, de “viola brasileira”. A história do violão no Brasil foi construída na contramão dos valores conservadores. Do século XIX até meados do século XX, o violão foi tratado como instrumento de vagabundos, de pândegos e baderneiros da periferia das cidades. Durante um longo período, o violão foi difamado por ser o instrumento preferido dos boêmios e seresteiros, sendo taxado de “instrumento marginal”.

Ao ler uma crônica escrita pelo intelectual mineiro Augusto de Lima, publicada na imprensa carioca em 1932, resolvi trazer à tona o pensamento daquela época:

“Foi descoberto agora, no Rio, que a música também possui a sua aristocracia instrumental, de que não podem participar a viola caipira, a concertina, o cavaquinho, o violão, a sanfona, a gaita, etc... Os tipos refinados dessa aristocracia são o piano, o violino, a harpa, o violoncelo, a flauta e outros delicados instrumentos de corda ou sopro. Quem deu motivo à descoberta foi justamente o mais lírico e boêmio de todos os instrumentos – o violão. O violão teve o seu ingresso vetado no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro.

Bateu à porta do Instituto o festejado musicista Isaias Savio (1900-1977), exímio violonista, executor de música clássica e de câmara, dos mais célebres autores. O Instituto abriu-lhe as portas para lhe dizer apenas que as suas austeras salas não podiam ser injuriadas pelos sons primitivos do violão. (...) Ali o violão não podia penetrar, com seu aspecto malandro, com as suas sonoridades escorregadias, próprias das notívagas serenatas, com os seus devaneios sob as janelas floridas das morenas sertanejas, com a flexibilidade de seus sons interpretadores dos sentimentos da alma brasileira. O violão é brasileiro demais para ser admitido no Instituto Nacional de Música.

E foi assim que o mais adorado dos nossos instrumentos, o companheiro das nossas horas magoadas e nostálgicas, o amante das noites enluaradas, foi enxotado do salão aristocrático de música por ser plebeu e até... quem sabe lá? Se também, bárbaro. Mas que deliciosa barbaridade!!!”

Aqui mesmo em Uberaba, durante a primeira metade do século passado, as jovens “bem-nascidas” eram terminantemente proibidas de estudar violão. O instrumento destoava da educação elitizada cultivada naquela época. No seu lugar, permitia-se o estudo do bandolim, instrumento que surgiu na Itália como evolução da família do alaúde, com seu característico formato de pera. O alaúde era o instrumento dos trovadores medievais, pertencentes à mais alta nobreza europeia. Honorina Machado, filha do capitão Francisco Antônio Machado, conceituado comerciante em Uberaba, foi a mais talentosa bandolinista nos saraus da primeira década do século XX. Quase todos os professores uberabenses ensinaram bandolim: Renato Frateschi, Illydio Salathiel dos Santos, Eloy Bernardes Ferreira, Eduardo Bourdot, Theobaldo Bossini, Walmor Camparini, Luiz Belluga e Antenógenes Magalhães. Em 1903, os professores Carlos Witte e Illydio Salathiel dos Santos fundaram um “Centro Bandolinista” em Uberaba, com apoio de elevado número de cavalheiros e senhoritas que se empenhavam na criação deste centro musical.

Muitos anos se passaram para que o violão tivesse acesso às salas de concerto internacionais, em apresentações de cunho erudito. Na realidade, foi o último instrumento a ser aceito. Os doze Estudos de Violão do compositor brasileiro Villa-Lobos, obras-primas do repertório violonista, resgataram definitivamente o violão para as mais importantes salas de concertos do nosso país.

Olga Maria Frange de Oliveira

Professora de piano, regente do Coral Artístico Uberabense, autora do livro “Pioneiros da História da Música em Uberaba” e ex-Diretora Geral da Fundação Cultural de Uberaba

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