ARTICULISTAS

ESG, cancelamento pós-moderno e class action

Guilherme Nostre
Publicado em 06/04/2022 às 19:31Atualizado em 18/12/2022 às 18:56
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Nos últimos tempos, vem ganhando destaque na vida empresarial a sigla ESG, referente às palavras em inglês “environmental, social and governance”, referindo-se a um compromisso a ser declarado pelas empresas com o fim de estabelecer as melhores práticas ambientais, sociais e de governança.

A sigla surgiu a partir de uma iniciativa das Nações Unidas que, em 2005, por meio do UN Global Compact, convidou importantes instituições financeiras de diferentes países, incluindo o Brasil, para estabelecer padrões éticos fundamentais da atuação corporativa. Isso porque, com a globalização, as empresas ao redor do mundo passaram a contar, de alguma forma, com o dinheiro das pessoas espalhadas por todo o planeta, desde grandes e pequenos investidores a todo tipo de consumidor. Nesse contexto, começou a se perceber a importância de se garantir a essas pessoas que seu dinheiro estaria, direta ou indiretamente, financiando apenas empresas que atuassem com práticas que não violassem os direitos humanos, os direitos sociais dos trabalhadores e o meio ambiente, além de não estarem vinculadas com a criminalidade e com a corrupção.

Justamente por isso é que a iniciativa se deu a partir de instituições financeiras, as verdadeiras intermediárias desses recursos, ou seja, a ponte entre as pessoas e as empresas. O raciocínio é simples, se os grandes conglomerados financeiros acumulam recursos que, na verdade, pertencem às pessoas, e utilizam esses recursos financiando as empresas, a fiscalização da atuação ética das companhias deveria começar exatamente por eles. Com esse pensamento, passou-se a exigir, para que as instituições financeiras pudessem intermediar o dinheiro das pessoas, a garantia de que somente iriam financiar atividades com as quais as verdadeiras donas do dinheiro aceitassem.

Nessa linha, as empresas ao redor do mundo (que, sempre é bom lembrar, só existem por causa das pessoas) passaram a entender que não basta atuar de acordo com a vontade da diretoria, não é suficiente atender aos padrões mínimos estabelecidos pelos legisladores de seu país, é preciso atuar de acordo com o desejo da sociedade global, ou seja, de todos aqueles que, de um lado, colocam suas economias nos bancos e, de outro, consomem direta ou indiretamente, seus produtos e serviços.

E quais seriam, nessa perspectiva, os desejos das pessoas de bem? Em outras palavras, o que cada um espera de uma empresa que, ao final, será financiada com suas economias ou receberá dinheiro quando ela estiver consumindo o que a empresa lhe oferta? A resposta consensual de um mundo civilizado, sonhado pelas Nações Unidas, pode ser resumida em alguns princípios:

1. Que as empresas respeitem as garantias fundamentais das pessoas e não compactuem com abusos e violações aos direitos humanos;

2. Que garantam aos seus colaboradores um ambiente seguro, com respeito e dignidade, abolindo o trabalho infantil e os serviços forçados e abusivos, além de eliminar qualquer forma de discriminação;

3. Que atuem com responsabilidade ambiental, usando os recursos naturais de forma sustentável, evitando danos e degradações ambientais e promovendo iniciativas de preservação do meio ambiente, sempre buscando reduzir as mudanças climáticas, além de desenvolverem tecnologias que reduzam os impactos aos bens ambientais;

4. Que não aceitem qualquer forma de corrupção ou fraude.

A partir desse momento, e principalmente agora quando iniciamos uma nova década, as empresas ao redor do mundo começaram a estruturar suas políticas internas com o fim de atender aos princípios que ficaram consagrados como ESG. E aqui reside o grande problema. Qual o verdadeiro objetivo para a afirmação por uma empresa de compromissos com o meio ambiente, os direitos humanos e o combate à corrupção e as fraudes?

Se a resposta for se adequar ao sistema financeiro para evitar restrição a financiamentos, pode-se adiantar que essa empresa está fadada a enfrentar sérios problemas, não apenas de mercado, mas, também, de compliance e jurídicos.

Toda a introdução deste artigo mostra de forma suficiente que a resposta correta seria se adequar aos anseios da sociedade. No novo tempo, e isso não é uma manifestação “poliânica”, a sociedade organizada pelos meios digitais simplesmente não aceitará que seu dinheiro acabe entrando nos cofres de uma empresa antiética.

As pessoas, em pouco tempo, deixarão não apenas de consumir produtos e serviços de empresas que não atendam aos princípios relacionados ao ESG, mas exigirão que as instituições financeiras não ponham o dinheiro proveniente de suas poupanças em cofres indesejáveis. Sem responsabilidade ambiental e social, a empresa não resistirá.

E de nada adiantará assumir compromissos e não os cumprir. Na verdade, poderá ser ainda pior. Empresas que afirmarem metas e não se esforçarem adequadamente para cumpri-las com efetividade estarão violando um compromisso assumido com a sociedade. E não será apenas o descumprimento de uma carta vazia de intenções lançadas para parecerem bonitas no papel e preencher um check-list burocrático nos bancos. Será a violação de um pacto social, com graves consequências para o inadimplente. Consequências econômicas, sociais e jurídicas.

Importante destacar que não serão as instituições financeiras que cobrarão a conta pelo descumprimento deliberado das metas, até mesmo porque, como vimos, não foram elas que impuseram esses princípios éticos a partir de seus interesses altruísticos (nem a ingênua Pollyana acreditaria nisso).

Quem certamente cobrará a conta será a sociedade, tanto por meio de repúdio ético coordenado, uma espécie de cancelamento pós-moderno, mas também por meio de cobranças institucionais e judiciais. Empresas que receberem recursos e financiamentos, ou mesmo que vierem a se posicionar na sociedade de consumo com base em compromissos falaciosos, poderão ter que indenizar a coletividade.

Nos Estados Unidos, class actions já vem sendo manejadas nesse sentido, e em todo o mundo, inclusive no Brasil, não faltarão instrumentos e instituições legitimadas para buscar a reparação de interesses coletivos, difusos e supraindividuais vilipendiados por compromissos assumidos apenas “para inglês ver”.

Guilherme Nostre

Doutor em Direito Penal pela USP, Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra e sócio do Moraes Pitombo Advogados

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