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Covid-19: a institucionalização do negacionismo

Sumayra Oliveira
Publicado em 11/02/2022 às 21:25Atualizado em 18/12/2022 às 23:59
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Como no resto do mundo, a variante Ômicron da Covid-19 tornou-se predominante no Brasil no mês de janeiro. Devido à sua alta transmissibilidade, o número de pessoas infectadas deu um enorme salto nas últimas semanas, levando à superlotação dos hospitais e prontos-socorros. Embora, pelo que se sabe até agora, essa variante seja menos letal que as anteriores, isso não tem impedido que os leitos de UTI na maioria das cidades brasileiras voltem a ficar novamente lotados, principalmente por pessoas não vacinadas ou que tomaram apenas a primeira dose da vacina. O número de mortes também aumentou em relação ao observado no final do ano. De acordo com os padrões observados em países atingidos primeiro pela nova variante, como a África do Sul, a expectativa é de que o pico de infecções ocorra até meados de fevereiro e depois recuem rapidamente. Entretanto, como esse período coincide com o carnaval, não se pode garantir que, no Brasil, se repita o mesmo padrão observado na África do Sul e em outros lugares.

Dois acontecimentos neste início de ano devem ser destacados no que diz respeito ao tema. Primeiro foi a tentativa do governo de retardar o início da vacinação de crianças de 5 a 11 anos. Segundo foi a publicação da nota técnica, pelo Ministério da Saúde, afirmando que a cloroquina é eficaz no combate à doença, mas as vacinas, não.

Mesmo após a Anvisa ter atestado a segurança das vacinas para crianças na faixa etária de 5 a 11 anos, o governo Bolsonaro resolveu fazer uma inacreditável “consulta pública” sobre o tema, antes de tomar a decisão de autorizar o início da vacinação. Isso retardou em algumas semanas o seu início, exatamente quando as crianças se preparam para voltar às aulas e estarão mais expostas à nova variante. A Ômicron parece ser menos virulenta e não ser capaz de invadir os pulmões nem de escapar das defesas mais profundas do sistema imunológico, mas, por ser amplamente mutante, consegue evitar a defesa de frente dos anticorpos gerados por vacinas e infecções anteriores. Além disso, o governo novamente retardou o processo de aquisição das vacinas, o que faz com que a quantidade entregue aos Estados nas últimas semanas não seja suficiente para atender à demanda. Em muitas cidades, a vacinação das crianças foi paralisada logo depois de iniciada.

O maior problema disso tudo, entretanto, é o fato de o governo Bolsonaro não perder uma única ocasião para tumultuar o esforço de vacinação e desacreditar as vacinas junto à população. O efeito disso pode ser medido pelo excesso de mortes que tem se verificado no país desde o início da pandemia. Das mais de 600 mil mortes verificadas no Brasil até o momento, pelo menos metade poderia ter sido evitada não fosse a inexplicável omissão e a sabotagem do governo ao esforço de vacinação.

Insensível a tudo isso e acobertado pela passividade criminosa do Congresso e do Ministério Público, o governo Bolsonaro, definitivamente, interditou qualquer esforço de tratar o problema de forma racional e científica. Passou a tratar o assunto a partir de um viés puramente político e ideológico, com o único objetivo de agradar cada vez mais a reduzida parcela da população, que abraçou uma atitude negacionista em relação à doença e às vacinas. Ao agir assim, Bolsonaro imagina garantir a passagem para o segundo turno das eleições, não importa o custo. Completamente cegas à realidade, essas pessoas se comportam como fanáticas seguidoras de uma seita em que o cérebro de Bolsonaro é a cabeça política. Não há argumento racional que possa convencê-las do contrário.

O clímax desse verdadeiro teatro do absurdo foi a nota técnica assinada por um secretário do Ministério da Saúde, reafirmando a efetividade do chamado “kit Covid” e afirmando que as vacinas não têm eficácia comprovada. Isso é muito grave, pois é a primeira vez que o negacionismo deixa a esfera da disputa ideológica e as sobras do “governo paralelo” para se transmutarem política pública. Até agora, Bolsonaro e seus áulicos, apesar de tumultuarem o esforço de vacinação, não tinham ousado tomar de assalto as políticas de Estado, um campo em que o negacionismo, exposto à luz da ciência, não conseguia sobreviver. Sempre que confrontados com argumentos técnicos, recuavam, como o diabo diante da cruz. O máximo que conseguiam fazer era dificultar a efetiva aplicação das políticas públicas, lançar dúvidas na cabeça das pessoas, agindo nas sombras e à socapa, sem deixarem suas impressões digitais na cena do crime. A malfadada nota técnica ultrapassou esse limite: é uma prova concreta, assinada, de um crime.

Sumayra Oliveira

Cientista Social, Mestre em Educação, Pesquisadora em Sociologia da Saúde e Antropologia Biológica

 

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