ARTICULISTAS

O Taxista Irracional

Ana Salvador
Publicado em 07/06/2021 às 20:16Atualizado em 19/12/2022 às 03:13
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Há muitos anos, quando as polarizações giravam em torno de outros nomes, tomei um táxi em São Paulo, onde eu vivia. Conversando com o motorista, me dizia ele que estava tudo muito ruim; os políticos todos, uns patifes, e ninguém se salvava. Se calhar, era um dia meio devagar, mas resolvi levar adiante uma pequena experiência.

Concordei com ele em tudo, e mais, afirmei que era mesmo o fim do mundo. Para ilustrar meu ponto, personifiquei todos os malfeitos do país em um nome em particular, conhecido localmente pelo percurso iniciado nas mesas de pôquer, quando sua mãe conseguiu forjar alianças para o filho, à custa do perdão a dívidas de jogos dos adversários, convertidos em apoiadores entusiasmados:

– É mesmo, tem toda a razão. E vai saber quem é o pior de todos...

Sabia eu que o tal político era admirado entre os taxistas, muito por iniciativas a eles dirigidas. O motorista, não querendo antagonizar comigo, não rebateu minha observação, porém não esticou o assunto. Silêncio no carro.

Também me calei e dei-lhe tempo para discordar, argumentar ou mudar de assunto. Vai chover? Faz sol? Seu time ganhou? Nada.

Silêncio, por vários minutos. Rompido por mim, seguindo o assunto, porém agora mencionando outros nomes, que, infelizmente, são tão fáceis de encontrar na lista de malfeitores nacionais. O condutor reencontrou o dom da palavra e retomou o ritual da execração coletiva a todos e mais alguns cafajestes públicos.

Voltei a mencionar o ponto sensível: “e o fulano, hein?” Era como desligar um botão. De novo, silêncio.

Explica a psicologia que nós fazemos a maioria das nossas escolhas de maneira pouco racional. Gostamos do que gostamos, depois justificamos.

Somos capazes de passar por cima de dezenas, ou centenas de argumentos contrários, para nos fixarmos em um ponto fundamental, vagamente relacionado ao assunto, desde que venha em nosso socorro.

Sair deste ciclo é tarefa difícil e, como tal, pouco buscada. É mais cômodo seguirmos como o taxista, encantados com nossa indignação pouco produtiva. Entretanto, tomar o caminho do autoconhecimento, ainda que levemos anos, é o único que pode nos salvar.

Ana Maria Leal Salvador Vilanova

Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica

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