ARTICULISTAS

Treinados, acomodados e equivocados

Ana Salvador
Publicado em 11/01/2021 às 19:40Atualizado em 18/12/2022 às 11:40
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Houve um tempo em que era normal que médicos assistissem partos logo a seguir a, sem qualquer tipo de assepsia, tocarem em cadáveres. A fascinante biografia do médico húngaro Dr. Inácio Filipe Semmelweis e sua busca pelas causas da chamada “febre puerperal”, que levava tantas mulheres ao óbito, narra sua luta para demonstrar sua tese e convencer colegas que o chamavam de louco. Com os recursos da época, não era possível ver os causadores da doença, seres tão micro, mas que hoje são de conhecimento geral. Muitos anos depois de sua morte, a tecnologia o alcançou. Herói póstumo é consolo?

O que isso nos diz sobre o que é normal e aceitável? Sobre o que nos parece claro como água, incontestável a ponto de haver quem creia ser necessário, até imprescindível, calar quem discorda? Evolução se alcança discordando de ideias, testando teorias, revisando estudos de pares. Um professor de estatística costumava testar os alunos segurando uma régua (daquelas antigas, grandes, que usava para apontar números no quadro) e fazendo uma pergunta: “o que acontece se eu soltar a régua?”. A resposta parecia clara e, de fato, no dia a dia, é suficiente: “vai cair”. Porém, para cientistas, a forma correta de abordar a questão vai muito além. Não discordam de que, provavelmente, vai cair, porém podem questionar o conceito; assim, dizem: “até hoje, caiu”. E mandar para a fogueira (ou sua versão moderna, o cancelamento digital), quem assim responde não contribui em nada para o progresso da humanidade.

Por outro lado, estamos sendo paulatinamente treinados para pensar cada vez menos e reagir mais. Em pequenas doses de 140 caracteres, fomos sendo lentamente induzidos a resumir todo e qualquer conceito a uma simplificação impossível para temas complexos, de solução difícil. Mas o que importa? De acordo com a infantilizada cultura atual, o que importa é “o que sinto”; nada mais. A expressão “viciado em indignação”, daqui a pouco, poderá ser mais do que figura de linguagem e passará a ser diagnóstico de doença mental.

Essa combinação tem sido explosiva e levada a uma divisão cada vez mais extrema, uma vez que pouco se baseia em fatos. Com cada parte entricheirando-se em seu viciante coquetel de emoções, a motivação para escutar ideias divergentes diminui a cada dose de químicos naturais que inundam o cérebro e acompanham a virtude sinalizada. Quem sabe, um dia, a tecnologia nos alcance o suficiente para demonstrar o estado altamente doentio em que muitos estão hoje em dia?!

Ana Maria Leal Salvador Vilanova

Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica

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