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Da importância do tempo perdido

Na Bíblia há um livro muito diferente daquele conjunto que se chama Palavra de Deus

Padre Prata
Publicado em 23/03/2019 às 10:40Atualizado em 17/12/2022 às 19:14
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Na Bíblia há um livro muito diferente daquele conjunto que se chama Palavra de Deus. Esse livro traz o nome de Eclesiastes. Foi escrito por Coelet, filho de Rei Davi, segundo dizem. Até hoje não sei se esse autor é um pessimista, se era um “existencialista” ou um realista irônico e, às vezes, mordaz. 

Coelet começa dizendo que o tempo é fugaz. “Onde está felicidade?”, pergunta. Ele mesmo responde: “Procurar a felicidade é correr atrás do vento”. E continua filosofand “Debaixo do céu há momento para tudo e tempo certo para cada coisa. Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para plantar e tempo para colher. Tempo para matar e tempo para curar. Tempo para construir e tempo para destruir. Tempo para chorar e tempo para rir. Tempo para atirar pedras e tempo para levar pedradas. Tempo para gemer e tempo para dançar. Tempo para abraçar e tempo para separar. Tempo para procurar e tempo para perder”.

Assim sendo, concluo que “perder tempo” faz parte da caminhada humana e é, de certa maneira, uma procura de felicidade, muito embora tudo seja fugaz. Perder tempo faz parte da sua, da minha, da vida de todos nós. Por quê, então, me lamentar?

Não podemos ser radicais. Fico pensando que perder tempo é fazer o que não me faz feliz. Saber perder tempo faz parte da sabedoria. Seria perder tempo ler poesia, se a poesia enche minha vida de enlevo quase místico? Seria perder tempo sentar-se e, durante horas, ouvir Bach, Beethoven, Mozart, Canto Gregoriano ou, para aqueles que gostam (inclusive eu), ouvir as canções da música popular brasileira? Seria perder tempo admirar durante bom tempo um pôr-do-sol colorindo nuvens em flocos? Seria perder tempo fechar os olhos e, em profundo silêncio interior, tentar ouvir a voz de Deus? Agora, para que estudar mandarim se, para mim, não traz nenhum proveito e felicidade? Ou você acha que devemos gostar das mesmas coisas? Recebi e-mails, aliás, muito delicados, protestando contra minha idiossincrasia contra as Matemáticas. Pitágoras dizia que o círculo é o símbolo da perfeição. Afirmava que “beleza” é a harmonia matemática. Dizia essas e mais coisas. Sei que grandes filósofos eram também grandes matemáticos. Mas, que fazer? Deus não me deu o dom de gostar de trigonometria e logaritmos. Nem sei mais se estudam isso. Que me perdoem. Também não me convenci de que, para ser padre, eu tivesse necessidade de saber o que é uma hipotenusa. 

Sempre estudava mais o que me trazia prazer, o que, de certa maneira, me trazia uma relativa felicidade. Como, hoje, só leio o que me traz bem-estar, prazer, felicidade. Nunca vou ler Camões nem Olavo Bilac. Prefiro Guimarães Rosa, Umberto Eco, Marcelo Gleiser e os teólogos modernos, mais abertos. Quando se avança em idade, quando, no inverno, nossos cabelos se cobrem de neve, vamos ficando muito exigentes em leitura. Não há mais tempo para ler tudo o que é preciso. O remédio é selecionar. O tempo fica cada vez mais curto. Assim sendo, que alegria eu poderia ter em ler Wittgenstein ou Paulo Coelho? Morreria de tédio. Não há mais muito tempo nem para perder tempo. Pensando bem, os italianos têm certa razão quando falam no “dolce far niente”. Eles devem ter lido Coelet...

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