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Um Supremo para chamar de meu!

Lúcio Delfino
Publicado em 20/06/2020 às 07:17Atualizado em 18/12/2022 às 07:12
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Em data recente, foi aprovada a Lei 13.964/2019 (hoje com eficácia parcialmente suspensa), que instituiu no Brasil o chamado “modelo do juiz das garantias”. Grosso modo, dois pontos merecem destaque: i) o juiz atuante no procedimento investigativo estará impedido de exercer jurisdição depois de recebida a queixa ou denúncia (processo crime); e ii) o julgador que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir sentença ou acórdão.

Quis-se, deste modo, preservar e reforçar a imparcialidade judicial, que além de (sagrada) garantia fundamental do cidadão, é outrossim a nota distintiva (e legitimadora) do poder jurisdicional. Um feito legislativo notável, malgrado a enxurrada de críticas pouco técnicas e ideológicas.

Mas para o Supremo Tribunal Federal nada disso parece ter importância. Na última quinta-feira (18/06/2020), por 10 votos a 1, o tribunal decidiu pela validade e prosseguimento do teratológico “inquérito das fake news” (ADPF 572). Sem dó nem pena, a imparcialidade judicial, que deve(ria) caracterizar todo e qualquer julgamento, foi enterrada em caixão de chumbo.

O Supremo atraiu para si a prerrogativa de instaurar inquéritos por conta e risco quando em jogo a autoproteção dos seus ministros e ou da instituição. Acusa, investiga e igualmente decide em proveito próprio.

Não dá para segurar os devaneios mentais que insistem em desvendar o próximo passo dessa escalada sem fim de autoritarismo judicial. Uma vez que o Ministério Público foi colocado de escanteio (com o seu consentimento vergonhoso e o da Advocacia Geral da União), pode ser que a partir de agora o Supremo comece também a promover ações penais públicas cujo julgamento seja do seu interesse. O círculo então se completará: um único órgão instaurando a investigação, presidindo-a, determinando medidas coercitivas, promovendo a denúncia e, por fim, julgando o feito e punindo os desafetos.

Deixando a ironia de lado, o que se verifica é a vitória do utilitarismo inquisitorial, que tem sido justificado por (frágeis) argumentos situando em posição sobranceira a instituição (e dos ministros que a compõem) em detrimento dos cidadãos que deveriam ser servidos por ela.

E os juristas e profissionais de perfil garantista (eu, inclusive!) comemorando o (suposto) ganho de imparcialidade judicial que deveria advir com a publicação da Lei 13.964/2019... Que ingenuidade!

A empolgação fez com que o óbvio fosse obnubilad o ativismo judicial no Brasil atingiu níveis tão alarmantes que as garantias constitucionais perderam totalmente a sua relevância, ou seja, tornaram-se “meras formalidades” de fácil manipulação retórico-argumentativa por juízes despossuídos do espírito republicano.

As engrenagens vivas do sistema de justiça decerto já estão se ajustando aos ares novidadeiros. Quem sabe, em breve, não presenciemos magistrados e tribunais instaurando aqui e acolá inquéritos contra litigantes e seus advogados, jornalistas, políticos e demais cidadãos. E, porque não, a instauração de inquéritos para investigar doutrinadores mais ousados que, insistentemente, criticam decisões judiciais.

Não importará muito se os alvos são “de direita” ou “de esquerda”, conservadores ou revolucionários, se amam Deus ou não. Tudo vai depender do sentimento dos juízes, que atualmente têm em suas mãos, graças ao bom Supremo, uma tese a lhes permitir fazer uso de forte mecanismo estatal para dissuadir ameaças, críticas e despautérios. E não há jeit quando se elimina freios contrajurisdicionais a consequência não é outra senão a amplificação da aposta ingênua no bom-senso do homem-juiz, este que, lembrando Thomas Jefferson, é tão honesto quanto as demais pessoas, possui as mesmas paixões por festas, poder e todo o resto. A arma, enfim, está engatilhada e prontinha para o manejo!

Quem vê na decisão do hodierno Supremo Tribunal Federal motivo de comemoração e júbilo, talvez amanhã esteja clamando, em ardente desesperança, por ajuda.

Lúcio Delfino

Doutor em Direito pela PUC-SP; membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro); advogado

 

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