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O Gene do Coentro

Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Publicado em 10/03/2021 às 20:32Atualizado em 18/12/2022 às 12:42
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Um carro nos fecha. O rosto franze, o corpo se contrai, o sentimento primal de raiva toma conta, antes de sequer pensarmos bem no que aconteceu. Quando pensamos, a situação piora. O que esse cidadão está pensando? Fechar um carro dessa maneira? Que absurdo! Irresponsável, calhorda, filho de uma senhora pouco respeitável! Essas são as versões publicáveis do que nos passa na cabeça. De um comportamento, que somos capazes de observar, deduzimos motivações e atitudes, das quais não fazemos a menor ideia.

Convidamos um amigo para jantar. Com carinho e apreço, fazemos aquele prato especial que aprendemos depois da viagem ao Nordeste, um peixe complicado. Metade da graça do prato é explicar a receita e todos os passos precisos e essenciais, necessários para chegar ao resultado exato de textura e sabor. A outra metade é o coentro. Mas, decepção, primeira mordida, o convidado involuntariamente aperta a boca, incapaz de esconder o desconforto. O que se passa? Algum problema? A resposta confrangida e estarrecedora: “desculpe, tem coentro, não posso com coentro”. Como assim? Coentro é maravilhoso, tudo de bom, a alma desse peixe! A rejeição ao prato parece um julgamento da própria habilidade culinária e uma desconsideração ao esforço atencioso. Até que se revela uma informação crucial. O convidado tem um gene. O gene do coentro.

Sim, isso existe. Populares testes de mapa genético são capazes de ratificar a condição. Quem tem o gene do coentro vive, de fato, uma experiência completamente diferente ao entrar em contato com o tempero fatal. Uns dizem que parece sabão. É até possível empurrar o alimento garganta abaixo, lutando contra a vontade de vomitar. Não é apenas um gosto ruim; é uma sensação geral de estranheza, o corpo todo rejeita. Assim, não é por desconsideração ou falta de costume que muitos não serão capazes de apreciar o prato feito com tanto carinho. Reconhece-se o esforço; infelizmente, o gene está aí pra atrapalhar tudo. Com essa informação, está restabelecida a amizade. Não é culpa de ninguém; é uma condição física. Agora entende-se a motivação, uma pequena peça de informação crucial mudou tudo. Sabemos o porquê.

E o carro que nos fechou? É possível que seja mesmo um irresponsável, que não saiba dirigir. Ou pode ser que, simplesmente, não nos tenha visto. Pode estar sofrendo um mal súbito, ou estar doente e com os reflexos algo retardados. Ou ter recebido uma notícia avassaladora e, no momento, estar meio fora de si. Se parássemos os carros e falássemos dois minutos, é possível que nos pedisse desculpas e reconhecesse, ou tomasse conhecimento do que fez. Ou não, em muitos casos nunca saberemos. Assumir a pior intenção (ou até uma intenção, de todo) é uma escolha inteiramente nossa. Ou podemos nos lembrar do gene do coentro e nos dar conta de que, talvez, uma pequena peça de informação fundamental nos falte. Intimamente, dizer “amigo, seja lá o que for, vá com Deus”, e seguir a vida.

Ana Maria Leal Salvador Vilanova - Engenheira civil, cinéfila, ailurófila e adepta da caminhada nórdica - [email protected]

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