ARTICULISTAS

"Você" é o Pelé ao contrário

Ana Maria Leal Salvador Vilanova
Publicado em 17/08/2020 às 19:19Atualizado em 18/12/2022 às 08:47
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Moro em Portugal há 15 anos. Pode-se falar muito sobre como é viver aqui, mas ainda hoje o contato com a língua portuguesa, na sua terra nativa, me traz um sorriso a cada vez que descortino algo novo e inesperado. Foram, e ainda são, muitas pequenas coisas que, sendo diferentes, quando não deveriam, acabam por me fazer pensar antes de falar. Sendo luso-brasileira, é como se meu idioma, em suas distintas vertentes, fizesse a gentileza de me lembrar de onde sou, e que não venho de um lugar só.

Já vi muitas listas de “traduções” de português para brasileiro por aí. Até fiz a minha, assim que cheguei. Mais difícil é transmitir as diferenças na forma de falar, as sutilezas no tratamento a amigos, conhecidos e estranhos e, em alguns casos, a pronúncia, às vezes, inescrutável. Alguém se arrisca a procurar uma pizâte? Garanto que há no Brasil.

Mas, o que mais me custou captar, foi o “você”. Logo que cheguei aqui, causava-me espanto que minhas conversas com os locais derivassem para um terreno estranho. Em algum momento, em vez de dizer: “O que você acha disso?”, “Onde você nasceu?” ou “O que você quer beber?” Diziam: “O que a Ana Maria acha disso?”, “Onde a Ana Maria nasceu?”, “O que a Ana Maria quer beber?”. A primeira vez que alguém fez isso, olhei por cima do ombro, meio assustada, pensand “Há outra Ana Maria aqui? Com quem ele está falando?”.

Só depois de algum tempo, entendi. Eu trato as pessoas por “você”. Por educação, as pessoas me devolvem o tratamento. E “você” é, exatamente, tratar o seu interlocutor como se ele fosse uma terceira pessoa. O caso é que “você” é um degrau mais distante que “tu”, porém não tão longe quanto “o Sr., a Sra.”. Para evitar dizer “você”, às vezes as pessoas preferem manter o tratamento, porém adotando a abordagem “Pelé ao contrário”, como eu a chamo.

Vejam, Pelé é famoso por se referir a si mesmo na terceira pessoa. Assim, se Pelé está falando com João, em vez de dizer, simplesmente, “eu tenho sede e quero água”, diria: “o Pelé tem sede e quer água” (ele tem sede e quer água). No “Pelé ao contrário”, por gentileza, Pelé estenderia a João o tratamento e diria: “o João tem sede? O João quer água?” (Ele tem sede? Ele quer água?). Se calhar, Pelé aprendeu em Portugal e adaptou um b’cadinho.

Ana Maria Leal Salvador Vilanova Engenheira civil, cinéfila, ailurófila, faz caminhada nórdica à beira-mar e vive perto de Lisboa

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