ARTICULISTAS

Patrimônio cultural: ainda as inconstitucionalidades

Guido Bilharinho
Publicado em 08/11/2019 às 19:18Atualizado em 18/12/2022 às 01:45
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As legislações federal, estadual e municipal que impõem, sob a alegação de terem valor cultural, o tombamento e a inventariação de imóveis sem a concordância explícita e expressa dos proprietários são inconstitucionais umas ou derrogadas outras.

A Indispensável Igualdade

Primeiro, porque afrontam e desobedecem a norma do caput do artigo 5º da Constituição Federal, de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, de natureza ampla e abrangente, impondo tanto a igualdade perante a lei (igualdade de aplicação) quanto também, em igual alcance e intensidade, a igualdade na ou dentro da lei, de seu teor e disposição.

Ao imporem restrições – essas legislações são todas restritivas – a determinados imóveis desiguala seus proprietários dos demais, de situações jurídicas comparáveis, criando duas classes, a dos inteiramente livres para usar, fruir, alterar e demolir seus imóveis e a daqueles que são impedidos totalmente de fazê-lo, tendo de pedir a determinados órgãos públicos autorização, mas, autorização apenas para conservá-los e não alterá-los como lhes for conveniente e necessário e muito menos demoli-los.

Ademais disso, ampliando e intensificando o grau de desigualdade entre esses proprietários, além das mencionadas limitações ainda são impostas, aos submetidos às citadas restrições, ônus obrigacionais e materiais de manutenção e conservação inocorrentes para os demais.

A desigualdade, pois, entre os proprietários de bens livres, isto é, não tombados ou inventariados, e os atingidos pela imposição legal é evidente e indiscutível.

Além do mais, a norma ora invocada é cláusula pétrea, que por força do disposto no parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição, não pode ser alterada por emendas. Além disso, insere-se no caput do extenso (e todo ele também pétreo) artigo 5º, significando em direito e técnica legislativa que esse dispositivo é o mais importante da norma que contempla.

O Direito de Propriedade

A profligada legislação preservacionista fere também, e não com menor virulência, o direito de propriedade garantido pelo inciso XXII do citado artigo 5º constitucional, contrariando frontalmente também o disposto no caput do artigo 1.228 do Código Civil, de que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa”.

A partir do momento das restrições que lhe são impostas para utilização de seu imóvel, o proprietário perde totalmente o direito de propriedade, garantido constitucional e legalmente, já que não pode dispor do imóvel a seu talante e alvedrio nem ao menos para atender necessidades individuais ou familiares prementes, já que, com a indébita intervenção do órgão público no direito constitucional de propriedade, o imóvel perde, na melhor das hipóteses, de 50 a 70% de seu valor de mercado, quando não 100%, que é o que ocorre geralmente, excluindo-o totalmente da comercialização por falta de compradores que, quando rarissimamente aparecem, não oferecem mais do que 20% a 30% do valor de mercado que teria se fosse livre do açambarcamento pela legislação e seus aplicadores e defensores.

A violência, pois, contra o direito de propriedade é também evidente e insofismável, constituindo equívoco o que se diz em contrário, mais ainda agravado quando perfilhado por operadores do direito.

Para tentar justificar essa violação, argui-se o teor do inciso XXIII de próprio artigo 5º, que dispõe que “a propriedade atenderá a sua função social.”

Antes e acima da função social da propriedade paira, porém, o direito de propriedade, que sem ele (o direito) e ela (a propriedade) não pode ser invocada, por caudatária e decorrente.

Não é lícito, pois, sobrepor a função social aos encargos, responsabilidades e compromissos individuais, familiares e coletivos (estes das pessoas jurídicas) originárias e primordiais da propriedade, tanto porque o ser humano é “a medida de todas as coisas” quanto por ser a família o núcleo fundamental da sociedade e as organizações da sociedade sua ampliação e desdobramento.

Ao se tombar ou inventariar imóvel particular de pessoas físicas ou jurídicas está-se, pois, elidindo e obliterando suas funções individual, familiar e coletiva, o que não é de se admitir sob nenhum pretexto ou motivo.

A Necessária Colaboração

Além disso, à infringência das normas constitucionais invocadas acresce-se, no caso, a violação do disposto no parágrafo 1º, do artigo 216 da Constituição que, ao atribuir ao poder público a função preservacionista, a exige que seja efetuada com a colaboração da comunidade, o que implica em aquiescência e cooperação, e não, como vem ocorrendo, com imposição.

A Admissível Hipótese

Resta, pois, aos órgãos públicos atualmente violadores da Constituição e infringentes da lei, quando os proprietários não concordarem com o tombamento ou a inventariação de imóveis de excepcional valor, como previsto no caput do artigo 1º do Decreto-Lei º25/1937, o caminho do entendimento com os proprietários para aquisição dos imóveis pelo valor de mercado.

Modo e Consequências

Em síntese, essas violações de normas constitucionais e legais sobrepõem e valorizam a materialidade (o imóvel) em detrimento do ser humano (o proprietário), provocando-lhe não apenas restrições e danos materiais e prejuízos financeiros, mas, também, em não menor grau e intensidade, aflição e danos morais permanentes, já que as limitações que lhes são impostas implicam em coerção e na humilhação de ter de se submeter a deliberações estranhas, alheias e insensíveis à sua vida, propósitos, dramas e necessidades, além do mais, sob pena de multas, em alguns casos escorchantes, confiscatórias e desumanas. 

(*) Advogado em Uberaba e autor de livros de literatura, cinema, estudos brasileiros, História do Brasil e regional editados em papel e, desde setembro/2017, um livro por mês no blog https://guidobilharinho.blogspot.com.br/

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