SAÚDE

Falta de consciência da população pode nos obrigar a ficar em casa mais um ano, alerta infectologista

Larissa Prata
Publicado em 30/04/2021 às 18:45Atualizado em 18/12/2022 às 13:27
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Atuar na imprensa em uma pandemia não passava pelos planos de muitos jornalistas. Lidar com os ataques, com o negacionismo e com o despreparo político é tão difícil quanto desafiador, sobretudo quando a saúde pede socorro. Imagine só quando profissionais na linha de frente imploram o amor de Deus para poder atender pacientes… Essa é a realidade vivida em Uberaba hoje, muito diferente daquela imagem de que “está tudo bem” em que muitos insistem em acreditar, mentindo para si mesmos. Nessa sexta-feira, o Pingo do J, da Rádio JM, ouviu o médico infectologista Vitor Maluf, que tem nas mãos uma missão quase impossível: salvar vidas em meio à correnteza de fatores que remam contra. Ele teve uma breve passagem pelo comitê técnico e científico da Prefeitura de Uberaba e é um dos principais gestores da saúde particular, no comando do enfrentamento à Covid-19 no Hospital São Domingos, o que o gabarita a conhecer e reconhecer os novos e tão estranhos tempos em que estamos vivendo. Confira, na íntegra, a entrevista feita pelos jornalistas Lídia Prata e Luiz Gustavo Rezende. 

PINGO DO J: A gente viu nesta semana 100% de ocupação dos leitos de enfermaria esgotados, gente na fila. Vimos também gente sendo enviada para Uberlândia porque aqui não tínhamos condição de receber na UTI aí no São Domingos. Qual é a situação hoje (ontem)? Ainda estamos com 100% de ocupação dos leitos?

VITOR MALUF: Não, não estamos com 100%, não. Estamos com 120%! Explico por quê. Todos os leitos de UTI, lotados; todos os leitos de enfermaria, lotados. Nós previmos uma enfermaria para 12 leitos e ela já está com 15; a UTI, com 24. Nós temos pacientes egressos da UTI Covid que saíram do período de isolamento e estão na outra enfermaria não-Covid, e temos hoje o que a gente chama de leito de transição, que são leitos que foram montados no pronto-socorro para esses pacientes não ficarem sem assistência até que a gente consiga leitos de internação. Então, a situação é complicada mesmo.

PJ: O deputado Heli Grilo contou ontem no Pingo do J que esteve no São Domingos na noite de quarta-feira (28) e que havia fila de ambulâncias para dar entrada no pronto-socorro. Esse quadro tem sido constante?

VM: Na verdade, não era só para dar entrada. Nós tínhamos uma ambulância que ia transferir um paciente para Uberlândia; outra para transferir um paciente para o Mário Palmério; duas eram pacientes que vieram fazer exames de imagens aqui na clínica radiológica do hospital, mas a procura por atendimento é muito grande. Nós mantemos uma média de atendimentos acima de 105 por dia. Só para você ter noção, na segunda-feira, chegou a 158, e na terça-feira, a 135, só aqui no pronto-socorro do Hospital São Domingos. Então, existe um esforço muito grande do hospital, da diretoria da Unimed, do conselho da Unimed, para que a gente consiga fazer esse atendimento aos nossos pacientes. No dia em que nós tivemos que transferir esse paciente para Uberlândia, a central de regulação ligou em Uberlândia, em Ribeirão, em Rio Preto, em Franca, em Araxá e em Belo Horizonte, para a gente poder transferir um paciente. 

PJ: Ou seja, em nenhuma dessas cidades havia leito disponível?

VM: Isso, exatamente. Uberlândia havia liberado para a gente cinco leitos a princípio. Em 15 minutos eles avisaram que só tinha um leito de UTI e nós pedimos pelo amor de Deus para eles garantirem a vaga e mandamos o paciente mais grave que estava aqui. Foi para o hospital Madrecor, em Uberlândia.

PJ: Olha a que ponto nós estamos chegand ter que pedir pelo amor de Deus para segurar uma vaga de UTI para um paciente grave…

VM: E nós fizemos também a mesma coisa no fim de semana com um paciente de Frutal, que estava numa situação muito grave e a gente conseguiu manter, mesmo com dificuldade, e receber esse paciente aqui na nossa UTI. Com os dados que nós temos visto, que a doutora Michelli apresentou, a situação vai ficar daqui para pior.

PJ: Mas, então, como que a gente vai fazer?

VM: O único jeito de a gente diminuir o número de casos ativos agora é diminuir a circulação do vírus, senão não vai ter jeito.

PJ: Essa circulação diminuir que o senhor fala é fechar tudo?

VM: (Pausa) É fechar tudo. Infelizmente, se não dermos um jeito de diminuir a circulação do vírus, a situação vai continuar. Nós vimos isso claramente nas duas cidades de São Paulo em que uma manteve tudo aberto e a outra fez o fechamento total, mais sério, mais rígido, e mostrou uma diminuição importante de casos, de casos novos e da mortalidade. 

PJ: Hoje em dia mudou o protocolo de intubação e não se intuba mais pacientes com 70% ou 75% de comprometimento pulmonar. Esse padrão mudou para 85%, ou seja, quando vai intubar o paciente é sinal de que ele está quase que com um quadro irreversível. É assim mesmo?

VM: Não é só a porcentagem de acometimento pulmonar que vai determinar se a gente vai intubar ou não o paciente. São vários parâmetros que a gente utiliza. Parâmetros clínicos, como o esforço respiratório que esse paciente está fazendo, a frequência respiratória desse paciente, a utilização de musculatura acessória para esse paciente respirar. Outra coisa, a análise dos gases venosos, dos gases arteriais desse paciente, como que está a saturação de oxigênio, como está a concentração de oxigênio no sangue. Aí, fazendo uma avaliação global de todos os parâmetros é que se decide se vai intubar ou não. Tivemos pacientes com 85%, 90% de acometimento, que conseguimos manter com um cateter nasal de alto fluxo e não precisaram de intubação, e paciente com comprometimento até de 50% com insuficiência respiratória franca, que tivemos que fazer a intubação desse paciente.

PJ: A gente já viu nesses primeiros meses (de 2021) que esse índice de mortalidade pós-intubação era quase de 100%. Pouquíssimos saíam da intubação. Esse índice melhorou?

VM: Esse índice hoje é em torno de 85%, ou seja, 85% dos pacientes intubados evoluem para óbito. 

PJ: A gente tem visto que, ultimamente, tem acontecido mais óbitos entre pacientes na faixa dos 30 ou 40 anos. Até mesmo essa semana nós vimos pacientes com 28, 26 e 25 anos. Essas questões tendem a se manter nessa faixa etária? A Covid está realmente acometendo mais esses pacientes e eles estão vindo a óbito com a mesma facilidade com que vinham os idosos? 

VM: O que a gente viu: aumentou muito nas faixas mais jovens. Conhecendo a evolução da doença, o comportamento do vírus, nesse ano e pouquinho de pandemia, nós sabemos que em torno de 10% a 15% das pessoas vão precisar de suporte hospitalar. 5% delas vão evoluir para a forma grave. Então, a gente extrapola para todas as faixas etárias. Se você aumenta muito o número de casos em todas as faixas etárias, até nas mais jovens, mais casos você vai ter nessas faixas. Graças a Deus, quanto mais jovem, mais forte é e mais consegue suportar a ventilação mecânica, e às vezes tem uma resposta melhor. Em questão de idade e comorbidades, os idosos são mais frágeis. Então, ainda nessa faixa etária, é mais grave a doença. Mas só para a gente ver o quanto vacina é importante, nós já temos trabalhos mostrando uma queda de 90% da mortalidade nos mais idosos após a vacinação. 

PJ: Ou seja, o negócio é acelerar também a vacinação das pessoas para poder, de fato, conseguir diminuir esses índices de mortalidade?

VM: Nós observamos isso nos Estados Unidos, que já têm hoje em torno de 60% da população acima de 18 anos vacinada. Os Estados Unidos tinham uma média de quatro mil e quinhentos óbitos por dia. Isso caiu para cerca de 700 ou 800 hoje com a ampliação da vacinação. 

PJ: Ontem assisti a uma reportagem sobre uma família em que o pai teve Covid e foi intubado, a mãe também foi intubada e ela estava grávida, tirou a criança com sete meses e, ao nascer, a criança também teve de ser intubada. Todos eles, felizmente, sobreviveram. No entanto, essa semana nós vimos aqui em Uberaba uma paciente também com Covid, grávida, esposa do vereador Varciel Borges, que infelizmente veio a óbito. O que determina, no caso da gestação, a vida ou a morte de uma paciente e, também, da criança?

VM: A gestação por si só é fator de risco. E não só para o coronavírus, até para o H1N1 ela é considerada fator de risco, e as gestantes são prioritárias para a vacinação. Acredito que, por elas estarem com um “corpo estranho”, elas têm uma alteração muito grande da imunidade. Então, a gente não sabe como vai ser a resposta desses pacientes. Aqui no nosso serviço, nós tivemos já umas 20 gestantes que passaram conosco. Infelizmente, tivemos essa paciente que veio a óbito essa semana. E tivemos uma menina de 21 anos que era puérpera, não era gestante, tinha cinco dias que ela tinha tido nenê, e veio a óbito; para você ver como que o sistema imunológico ainda está afetado pela gestação mesmo alguns dias após o parto. Mas a grande maioria tem evoluído bem, com formas leves da doença, e a gente, conseguido preservar tanto a mãe quanto o feto. Mas a gestação, por si só, já é um fator de risco para várias doenças.

PJ: Em uma de nossas outras entrevistas, o senhor disse “meus colegas vão me matar, mas eu vou defender a volta às aulas para as crianças”. O senhor ainda está com esse mesmo ponto de vista?

VM: Hoje, com a situação do jeito que está, eu acho que a gente tem que parar é tudo. Dar um tempo, de 15 ou 20 dias, parar, diminuir a circulação e aí voltamos às atividades paulatinamente com segurança. 

PJ: O que o senhor chama de segurança? Quando nós vamos poder ter essa segurança? 

VM: A segurança mesmo é quando a gente tiver pelo menos 70% da população vacinada.

PJ: Mas aí nós vamos passar o resto do ano dentro de casa…

VM: Provavelmente… 

PJ: Mas como a gente almoça, janta, paga conta?

VM: Ontem, o secretário Sétimo foi muito feliz numa fala dele que eu ouvi e até foi replicada no Jornal da Manhã. Que o Poder Público tem que equilibrar isso aí. O que é saúde, o que é saúde financeira das pessoas e o que é a viabilidade do município em relação às empresas e ao trabalho. Isso é muito difícil. Por isso que hoje eu fiquei só com a assistência, porque aí eu vejo só um braço e fica mais fácil a gente opinar. Mas é muito difícil mesmo. Não é uma coisa fácil. Até a gente ter essa taxa de cobertura vacinal vai ser muito complicado. Vamos ter essas oscilações, aumenta e diminui, aumentam os casos, aumentam as internações e aumenta a mortalidade. Diminui-se a circulação do vírus e diminui-se os casos, internações e mortalidade. Infelizmente, é uma realidade dura, triste e cruel. 

PJ: Se Uberaba continuar da forma como está atualmente, em quanto tempo o senhor acredita que pode colapsar totalmente o sistema de saúde aqui na cidade?

VM: Nós estamos com praticamente 100% de ocupação em tudo. Para mim já está colapsado. 

PJ: Temos alguma opção? Aumentar número de leitos, abrir hospital de campanha como se chegou a ser cogitado, tem alguma outra opção para a gente ter um paliativo nesse momento? 

VM: Nós temos uma dificuldade grande e estamos sentindo isso na pele. Aqui, no hospital, nós temos vaga de emprego aberta para técnico, para enfermeiro e até médicos, para ajudar nas escalas de plantão. Só para você ter noção, hoje, o Hospital São Domingos, durante 24h por dia, tem médicos de plantã três na UTI Covid, um na UTI não-Covid, um na UTI neonatal e dois no pronto-socorro. Isso em 24 horas. Em alguns períodos, a gente tem até quatro médicos no pronto-socorro. Ou seja, olha quantas equipes. Essas equipes podem rodar no máximo 12h. Depois, nós temos que trocar e fazer o revezamento. As vagas de técnicos de enfermagem aqui, no hospital, estão abertas; são 16 vagas e não conseguimos preenchê-las. Se a gente quiser comprar respirador, porque tem uma grande quantidade de pacientes intubados, também estamos tendo dificuldade de conseguir equipamento. Medicamentos sedativos, então, a história é conhecida por todos. Mas a grande dificuldade, e mesmo que tivéssemos equipamentos, sedativos e tudo mais, seria montar uma equipe para tocar um hospital de campanha ou tocar mais leitos. A grande dificuldade que nós temos hoje é de mão de obra.

PJ: A compra de sedativos aí no Hospital São Domingos está sendo feita com três meses de antecedência, na expectativa de recebê-los, porque o fornecedor sequer garante prazo para entrega. É isso mesmo?

VM: Perfeitamente. Nós, inclusive, já efetuamos e pagamos, há quase 40 dias, junto com a Unimed Nordeste Paulista, mais a Unimed Belo Horizonte, mais a Fesp, que é a Federação das Unimeds do estado de São Paulo, uma compra de importação para vir material de contêiner. A resposta do importador: daqui duas semanas. Daqui mais duas semanas. Daqui outras duas semanas. E isso já foi faturado. Fora o que a gente faz aqui com os fornecedores internos do país. Nós temos contratos com eles para fornecimento de medicações, pagamos adiantado, mas não temos garantia de recebimento desses remédios.

Eu posso fazer só um desabafo?

PJ: Pode, claro.

VM: Está muito pesado para a gente. Eu estou conversando aqui emocionado, já com os olhos marejados, porque está muito difícil. Acompanhar isso, essa tragédia. Porque é uma tragédia esse número de óbitos, esses números de casos, o que as famílias têm passado, isso é muito difícil. Isso para nós, que estamos mexendo com a Covid esse tempo todo, é muito difícil. Eu imagino para quem perdeu um ente querido... Então, eu faço aqui um apelo para o pessoal não ficar aglomerando, manter o distanciamento, usar máscara, porque não está fácil. Imagina uma situação de chegar um paciente e você não ter onde pôr, como fazer para atendê-lo?! Eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer, ainda mais trabalhando na rede privada. E isso não é só aqui. Liga no Sírio, no Einstein, para você ver se tem uma vaga para transferir para lá. Está difícil, a situação está difícil para todo mundo. Então, eu deixo aqui o meu apelo para as pessoas se cuidarem. 

O Observatório Covid, até agora, não errou nada. As previsões feitas por eles foram “em cima da pinta”. Não sei se vocês vão lembrar, a doutora Michelli tinha previsto que na primeira quinzena de março ia ter colapso e o serviço de saúde ia estar cheio. Batata! Então, a gente tem que se cuidar mesmo. Quem tiver que trabalhar, que trabalhe com cuidado, com responsabilidade. Mas vamos evitar o que não é necessário, o que pode ser evitado agora. Senão vai ter que fechar tudo e vai acabar sendo uma tragédia tão grande e tão ruim quanto a Covid. Tragédia dupla. 

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