POLÍTICA

Fim do auxílio emergencial pode levar até 3,4 milhões para extrema pobreza

Publicado em 11/01/2021 às 16:43Atualizado em 18/12/2022 às 11:41
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Por Douglas Gavras e Érika Motoda

Morador da rua Meu Destino, Anderson cogita dar a casa como garantia, em um empréstimo, para comprar comida; Hudson voltou a morar com os pais para enfrentar um câncer; Lucimar deixou o isolamento e vende máscaras na rua para sustentar o filho. Com o fim do auxílio emergencial no ano passado, e se nada for colocado no lugar para amparar os mais vulneráveis, até 3,4 milhões de brasileiros a mais, como eles, podem cair na extrema pobreza - sobrevivendo com menos de US$ 1,90 por dia (algo como R$ 10), a linha de corte definida pelo Banco Mundial.

De acordo com uma pesquisa do especialista em política social Vinícius Botelho, publicada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), com isso, a pobreza extrema neste ano pode ser maior do que a verificada no País antes da covid-19.

Nesse cenário, o número total de pessoas na extrema pobreza chegaria a 17,3 milhões em 2021, segundo os conceitos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O aumento levaria o País ao pior patamar de pobreza desde o início da pesquisa, em 2012.

"Se nada for feito, a política social vai continuar com a mesma potência que em 2019, mas em uma realidade completamente diferente", diz Botelho, ex-secretário dos ministérios da Cidadania e do Desenvolvimento Social. "Durante a pandemia, as pessoas perderam a renda do trabalho. Com o auxílio, essa queda foi compensada, mas, como não há alternativa para 2021, podemos cair em uma situação pior do que antes. É como se o Brasil tivesse feito um 'voo de galinha' na redução da pobreza."

De 2012 a 2019, a variação das taxas de pobreza decorreu da dinâmica econômica - quando o País crescia, a pobreza era reduzida e vice-versa. No ano passado, no entanto, o auxílio emergencial (de cinco parcelas de R$ 600 e quatro de R$ 300) serviu para que a potência da política social aumentasse muito.

"O País já tinha muita gente na extrema pobreza, mas 2020 nos fez lembrar que esse problema precisava ser equacionado urgentemente. Só que o mesmo Brasil que fez um auxílio emergencial gigantesco virou o ano sem garantir o reajuste do Bolsa Família. Na verdade, pouca gente acreditava na criação de um programa novo", diz Botelho.

Desigualdade

Um outro levantamento, do pesquisador Daniel Duque, do Ibre/FGV, aponta que a desigualdade deve aumentar quase 10%, por conta do fim do auxílio, e que 2020 deve ser um ano perdido na redução das diferenças sociais. O Índice de Gini (medidor da desigualdade, em que quanto mais próximo de 1, pior é a distribuição de renda) estava em 0,494 em novembro passado. Sem o auxílio, o indicador iria a 0,542 nas mesmas condições daquele mês.

Isso se daria porque a renda da população, em novembro, chegou a R$ 1.286, em média - patamar 5,8% maior, em termos reais, que o observado em maio, no início do pagamento das parcelas do benefício emergencial, segundo a Pnad-Covid, pesquisa feita pelo IBGE durante a pandemia, mas com metodologia diferente da Pnad Contínua.

Duque lembra que a desigualdade tinha caído em 2019 pela primeira vez desde 2014. "O saldo do ano passado, no entanto, deve empatar com o de 2019. A pandemia deve impedir a queda da desigualdade", diz.

Com o fim do auxílio, o governo começa a discutir formas de ampliação do Bolsa Família, mas, entre os economistas, a avaliação é de que algo já deveria ter sido proposto. Pressionado para retomar o pagamento do auxílio, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ironizou na semana passada a possibilidade de estender o benefício. "Se pagar R$ 5 mil por mês, ninguém trabalha mais", disse.

"É absurdo ele dizer que não pode fazer nada", protesta o ambulante Hudson Moreira, de 49 anos. Com câncer, ele dependia do auxílio. Sem o benefício, agora conta com a aposentadoria dos pais, enquanto espera o fim da pandemia. "Infelizmente, votei nele e me arrependo. O presidente precisa lembrar que está lidando com vidas. E a pandemia é séria, não é um resfriado."

Acabar com o auxílio emergencial é jogar de novo essas pessoas na pobreza ou na informalidade, avalia a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Úrsula Peres. "Esse boom de recursos movimentou a economia, impedindo uma queda drástica do consumo e beneficiando as finanças estaduais e municipais."

Na última semana, o Estadão mostrou que o governo prepara uma medida provisória (MP) para reestruturar o Bolsa Família. A perspectiva é que sejam unificados benefícios já existentes, além do reajuste de valores e a criação de bolsas por mérito. Assim, 14,5 milhões de famílias seriam contempladas, ante as atuais 14,3 milhões. Alternativa ao auxílio é remodelar programas

Com o fim do auxílio emergencial, o Bolsa Família volta a ser o principal mecanismo de transferência de renda do País. O problema é que, além de atender a um número menor de pessoas, ele já estava defasado antes mesmo da pandemia. Há inúmeras propostas sobre a mesa para substituir o auxílio, e a maioria passa pelo aperfeiçoamento de programas que existem - até porque qualquer aumento de despesa esbarraria na completa falta de recursos do governo e no teto de gastos.

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, é um dos autores do Programa de Responsabilidade Social, que visa a aprimorar a rede de proteção social. Pela proposta, é essencial saber a diferença entre dois perfis: aqueles que já são muito pobres e não conseguem se encaixar no mercado de trabalho e os que conseguem se sustentar, mas têm oscilação de renda.

"Para o primeiro grupo, é necessário o Bolsa Família. Já para o segundo, a proposta não é uma renda mínima, mas um segur todo mês você deposita um valor para a pessoa e, quando ela precisar, ela saca", diz.

Já o economista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) João Romero defende que será preciso rever o teto de gastos, que limita as despesas do governo ao orçamento do ano anterior corrigido pela inflação. "A pandemia trouxe para o centro do debate a necessidade de reforçar mecanismos para garantir o mínimo de dignidade para a população."

Correções

Enquanto não há uma movimentação política em direção a um esquema mais estruturado, o presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira, defende que, ao menos, o Bolsa Família seja corrigido de forma a não ter filas de espera para o programa, hoje em torno de 1,3 milhão de famílias. Com o fim do auxílio emergencial e alta do desemprego, a tendência é que a espera pelo benefício cresça. "Corrigir os valores é urgente. A linha de extrema pobreza do programa, de R$ 89, faz com que muitos pobres não se enquadrem. Não precisa pagar R$ 600 para todos, mas o Bolsa Família precisa ser reajustado", diz Ferreira

Rogério Barbosa, pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole, da USP, avalia que uma reforma tributária mais progressiva, que taxe mais quem tem mais, será inevitável. "É mais viável um programa de renda que custe R$ 100 bilhões por ano, bem menos do que o auxílio emergencial, que chegou a custar R$ 50 bilhões por mês."

Para Naércio Menezes Filho, do Insper, é importante que a política de transferência de renda evolua para um sistema que tenha nos jovens de até 18 anos seu público-alvo. "A renda básica deve acompanhar os brasileiros desde a primeira infância. Não é gasto, é um investimento que melhora a produtividade."

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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