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A política vai ao boteco

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 21/09/2021 às 19:41Atualizado em 18/12/2022 às 15:59
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Se há um lugar democrático no Brasil, este lugar é o boteco. Desde que você não contrarie o dono. Outra característica interessante dos botecos é que, como as ervilhas, não há um idêntico ao outro, embora sejam tão parecidos entre si. A informalidade é uma peculiaridade deles, faz parte da sua identidade. O barulho, as conversas em voz alta, as opiniões desencontradas, o cheiro de gordura e a alegria são outras, além dos petiscos, das coxinhas, do torresmo e da mandioca frita. Hum!

O boteco que eu costumava frequentar todo fim de tarde era igualzinho. Tinha mesas na calçada, tinha plaquinha advertind “Fiado só amanhã”, tinha muito toco de cigarro nas redondezas – apesar dos protestos do Seu Vicente, o dono – e muitas controvérsias. Sim, botecos são locais privilegiados de ocorrência de polêmicas. Discute-se de tudo. Depois de uma jornada extenuante de trabalho e de uns goles, todo mundo se torna um entendido em qualquer coisa, vira cientista, padre, médico, jornalista, etc.

Nos últimos tempos, o Seu Vicente andava preocupado com o acirramento das discussões sobre política. No final da década de 1980, ele passou por uma situação desagradável e não queria repetir a enrascada em que se meteu. O que fazer? Resolveu proibir o debate político no seu botec “É proibido falar de política aqui!”, decretou. Mandou confeccionar a placa e colocou ao lado daquela do fiado. E passou a monitorar os fregueses. Ao ouvir as palavras: “partido”, “democracia”, “ditadura”, “esquerda” ou “direita”, saía correndo para lembrar ao freguês quais eram as regras do local.

Boteco não combina com regimentos e rigidez, e a situação se agravou. Um dia, o Reinaldo apareceu indignado por causa da derrota do seu time de futebol e lascou um desabaf “é nisso que dá a política dos dirigentes!”. Pronto, lá veio o Seu Vicente censurar: “política aqui não!”. O Reinaldo foi embora e nunca mais voltou.

Outro dia, foi a vez da turma do Emanuel se dar mal. O assunto era relacionamento amoros briga de casal, fofocas, “chifre”, “traição” e o Léo deixou escapar: “casamento não pode ser uma ditadura!”. E já apareceu o Seu Vicente: “Política aqui não!”. Foram todos embora, ameaçando não pagar a conta.

O caldo entornou – e não foi o delicioso prato servido nas noites frias – quando o Enzo chegou para trocar uma latinha de sardinha com data de validade vencida. Contrariado, o Seu Vicente falou: “Nossa política de trocas exige que a reclamação ocorra em até sete dias”. Ah, pra quê? Foi um grito só: “Política aqui não, Seu Vicente!”. E caíram na gargalhada. O pobre homem não tinha onde enfiar a cara. Dali por diante, a freguesia minguou e o boteco acabou fechando. Esse negócio de política é complicado, sem jogo de cintura vai tudo por água abaixo, o povo não perdoa. Afinal, como seria a vida sem política?

Renato Muniz B. Carvalho

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