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O pé de mamão

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Publicado em 05/04/2021 às 20:04Atualizado em 19/12/2022 às 04:05
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A casa tinha um corredor comprido, ocupava todo o espaço lateral, que ia do jardim da entrada até o muro dos fundos. As janelas dos quartos davam para o corredor. Nas noites de chuva, a água caía do telhado e batia no concreto, com sua cadência típica. Não tinha vista, o muro alto impedia de ver além da parede desbotada.

Alguns vasos de flores ficavam encostados no muro ao longo do corredor. Geralmente, eram vasos a serem recuperados; assim que estivessem bonitos, vistosos, voltavam para o jardim na frente da casa. Pouca gente frequentava o corredor; apertado, nem para passagem servia. Questão de costume. Vez ou outra largavam ali um objeto qualquer, uma bicicleta, um móvel quebrado, até seu próximo destino, que podia ser o lixo ou o conserto.

Pouco importa falar do corredor, mas sim do pé de mamão que nasceu lá um dia desses, sem que ninguém tivesse plantado.

Nasceu tímido, num espaço tão estreitinho, numa fresta entre o muro e o piso, que foi difícil imaginar como uma semente tivesse se instalado ali e prosperado. Mas prosperou; não se sabe como. Ninguém molhou, a não ser a água da chuva. Se ninguém cuidou, também não cortou. Demorou um ano e já estava quase ultrapassando a altura do muro. Várias folhas, tronco claro, grosso o suficiente para aguentar o vento forte do inverno. Pequenas flores indicavam a possibilidade de frutos num futuro breve.

Não dá pra saber as razões que levaram ao debate sobre se deviam cortar ou não o pé de mamão. Um dia, alguém surgiu com a ideia. Preferiram não cortar. O pé de mamão não oferecia nenhum risco, não tinha galhos que ameaçassem o telhado ou a estrutura da casa, mas seu tamanho chamou a atenção dos moradores da casa e dos vizinhos. Ainda bem que a possibilidade da existência de deliciosos frutos esfriou o ímpeto de erradicação e corte. Como não atrapalhava em nada no cotidiano da casa, deixaram o pé quieto.

No ano seguinte, ele produziu. Uma penca de frutos pendurados no tronco, presos por um cabo fino junto às folhas. Logo, os frutos amadureceram e, aos poucos, foram colhidos. Tinham a polpa amarela, muitas sementes, sabor delicioso. No fim, foi bom ter deixado o pé de mamão em paz.

Não existem metáforas inquestionáveis ou lições definitivas. As vivências são construídas historicamente. O melhor seria que as casas tivessem quintais onde pudessem crescer pés de mamão e outras árvores frutíferas, além de flores, de todas as cores e formatos — e menos áreas impermeabilizadas. Bom seria ver as cidades com mais praças, parques e espaços de convivência. O ideal é a sociedade cuidar melhor das suas áreas verdes, zelar pela diversidade biológica e estimular a preservação ambiental. É pouco, mas, se encontrarem um pezinho de mamão se esgueirando por uma fresta impossível, ainda há esperança.

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