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Ócio criativo e vida fértil

Vânia Maria Resende
Publicado em 21/10/2020 às 19:24Atualizado em 18/12/2022 às 10:26
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Viver sob o jugo do cumprimento de roteiros intransigentes tem como preço descompensações. O que excede de um lado gera faltas de outro, ou o que falta de um lado gera excessos de outro. Por isso, não é improvável que o escravo da austera razão dogmática sofra algum transtorno decorrente de divisão interna. Do descompasso vêm insatisfações inexplicáveis ao nível da consciência. Favorecer a satisfação íntima pela emancipação de desejos, emoções, sonhos fica fora de cogitação das imposições da ordem prática. A privação do prazer do ócio benéfico solapa necessidades vitais que, se atendidas, mantêm a vida em movimento saudável de criação e renovação.

Na obra “O ócio criativo”, o italiano Domenico de Masi dimensiona o valor do ócio que não é fútil, ou seja, aquele que proporciona prazer essencial e é usufruído em pequenas vivências, como esta apontada pelo autor: “balançar-se numa rede, que é o símbolo por excelência do ócio criativo, perfeita antítese da cadeia de montagem que foi a síntese do trabalho alienado”. O sociólogo cita experiências simples propícias ao ócio, como observar fachadas de prédios, vitrines e rostos, que circulam pelo metrô; prestar atenção na beleza de uma garrafa, um carro ou outro objeto; assistir a algo interessante na TV; ler um livro; apreciar o pôr do sol e o nascer da lua...

Não custa dinheiro, ou custa muito pouco explorar caminhos novos; deliciar-se com um pastel, doce de feira ou a descoberta de algo diferente em um canto por aí; remexer a terra para plantar e cuidar de plantas; ser tocado por cheiro, sabor, cores na culinária; colher fruta e comer no pé; admirar o vasto universo com milhões de pequenas luzes inatingíveis, lá no alto; sentar-se no banco da praça para ver os raios solares refletidos nas árvores e o fluir pitoresco do cotidiano, com episódios surpreendentes, peculiaridades de pessoas que passam e o movimento festivo e lúdico de animais.

Para De Masi, “ociar não significa não pensar. Significa não pensar regras obrigatórias, não ser assediado pelo cronômetro, não obedecer aos percursos da racionalidade [...]. O ócio criativo obedece a regras completamente diferentes. Mas é o alimento da ideação. É uma matéria-prima da qual o cérebro se serve. [...] o cérebro precisa de ócio para produzir ideias”. (obra citada). Esse ponto de vista não é favorável à ganância econômica que tem por lema “tempo é dinheiro”, que sintetiza a obsessão por lucros cumulativos. A significação do que é essencial à subjetividade, nem sempre de valor monetário e material, perde-se ou se inverte na conjuntura em que o ritmo de trabalho é incessante em função de produção intensa, de tempo integral, na proporção direta do consumismo.

Precárias condições de vida e de trabalho são geradas tanto pela precisão da sobrevivência quanto pelo excesso de ambição empreendedora, a que estão sujeitos executivo, empresário, investidor, workaholics (viciados em trabalho). Quem sobrevive como escravo de necessidades básicas ou como cego pelo poder econômico tende a não ter tempo, ou não se dar tempo ao ócio de qualidade. Como a fruição do ócio criativo estimula sentir, sonhar, refletir, contemplar, privar-se dela certamente tem como consequência menos motivos para alegria, saúde e sentido de vida.

Lembro-me da cena que vi em um restaurante, na região dos jardins em São Paulo, onde executivos almoçavam. Todos com celular ao lado do prato, a postos para contatos. Um mais ansioso se manteve em sintonia simultânea com um aparelho em cada orelha. A aceleração do autômato não deixa de ser ridícula, mas o que sua condição atormentada provoca mesmo é riso nervoso. Nos dois extremos da hierarquia social o esgotamento físico, emocional, mental gera vítimas, com corpos anestesiados, sem disposição para pensar, sentir, criar. Reste, talvez, a umas sonhar com emprego, casa própria, comida, e a outras, com a transfiguração de si mesmas em baú abarrotado de ouro. Esses sonhos radiografam o desfalque nas vias fecundantes da realização criativa humana e da sociedade, por descompensação do princípio do prazer.

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