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O menino do lixo e a indiferença

Chegou ao juiz a informação de que na rua, naquela madrugada, jogaram um pobre menino na caçamba de lixo

Ricardo Cavalcante Motta
Publicado em 13/12/2019 às 20:28Atualizado em 18/12/2022 às 02:46
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Chegou ao juiz a informação de que na rua, naquela madrugada, jogaram um pobre menino na caçamba de lixo. Sim, exatamente isto! Ao amanhecer, um senhor seguia para o trabalho e ouviu o pedido de socorro do menino de cerca de doze anos que, segundo disse, foi ali lançado por alguns rapazes bêbados quando voltavam da farra. O menino beirava a caçamba de lixo sabe-se lá por que. O juiz indagou sobre a autoria do ato aos policiais que registraram a ocorrência. Responderam que o menino não revelou. O juiz ficou intrigado, afinal naquela cidade todos poderiam ser identificados pela fisionomia, mesmo que não tivessem relações. Mandou buscar o menino. Este, questionado, com os olhinhos vivos e aflitos, disse não saber dos autores. O juiz percebeu que ele temia pelas consequências da revelação. O menino era simpático. Daí travaram amizade e convivência. O menino tinha consigo uma lata de graxa de sapato e um paninho e ofereceu engraxar os sapatos do juiz, que aceitou. Bem remunerado, passou a repetir a empreitada todos os dias. Sensibilizado, o juiz providenciou uma caixa de engraxate com todos os apetrechos necessários ao ofício, mais graxas de todas as cores. O menino passou a ser acatado em toda a comunidade. O juiz exigiu frequência na escola, doou materiais escolares, dava orientações e conselhos. Prestigiou o menino visitando sua humilde casa cedida pela bondade dos discretos irmãos Vicentinos, onde ele cuidava, como podia, de sua enferma mãe. O menino ganhou consideração na comunidade e deixou de ser tratado como o menino do lixo para ser apontado como o amigo do juiz. Um dia, para sua tristeza, o juiz se foi. Sentiu-se algo desprotegido mas, já crescido, permaneceu com alguma força e estima. O menino venceu na vida. Anos se passaram e certa feita o menino e o juiz se reencontraram. Em conversa, o juiz perguntou ao menino, já maduro, quais lembranças do episódio do lixo. O menino serenamente respondeu. Não guardei ódio ou rancor, sinceramente nem com trauma fiquei. Afinal, mesmo sem entender, eu me sentia de fato quase ninguém, quase nada, quase lixo. Penso que os rapazes não fizeram aquilo para deliberadamente me humilhar, fizeram por farra apenas. Mas o que lamento é que a causa que os moveu automaticamente ao ato impensado e inconsequente foi a indiferença, um dos maiores males da humanidade. Exatamente, a indiferença que sentimos pelos outros em reiteradas ocasiões. Hoje compreendo. Pouco se importavam comigo, com o que eu sentiria. Assim como a maioria não se importa com as agressões preconceituosas ante a dor dos ofendidos, com as posturas machistas humilhantes, pela ocupação fraudulenta da vaga dos deficientes, com a existência dos idosos, com as filas nos hospitais, com a fome alheia e por aí em diante. A indiferença está tão arraigada que não se enxerga sequer quem o serve em uma festa. Forte é a indiferença à existência do próximo tão semelhante, como se o mundo fosse feito por castas sentimentais. Eles foram apenas tão frios e apáticos como aprenderam a ser nessa sociedade selvagem que nega se rever, se entender, que nega a comunhão. E eu que no contexto me via mesmo próximo do nada, não podia sequer me sentir humilhado ao ponto de ficar traumatizado. Hoje que decifro, lamento pela nossa sociedade, pela humanidade. Cabisbaixo, o juiz, peça dessa engrenagem, ouviu calado.

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